Diversão e Arte

Ex- embaixador do Brasil nos EUA lança livro sobre os bastidores do cargo

postado em 19/10/2011 08:00

PONTO A PONTO. RUBENS BARBOSA

"Não se faz política externa dando alfinetadas nos EUA"

Ullisses Campbell



São Paulo


; A estreita relação que o Brasil mantém hoje com os Estados Unidos é resultado de uma costura que levou décadas para ser alinhavada. Parte desse relacionamento entre as duas nações foi testemunhada por Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Washington. Sua experiência está relatada em 368 páginas do livro O dissenso de Washington ; Notas de um observador privilegiado sobre as relações Brasil-Estados Unidos, que será lançado hoje, às 19h, na Livraria Saraiva, do Pátio Brasil.

Barbosa representou o Brasil na capital da nação mais rica do planeta entre 1999 e 2004 e conta com orgulho que esteve no cargo em dois governos bem distintos, no de Fernando Henrique Cardoso e no de Luiz Inácio Lula da Silva. "Sou amigo do FHC. Fui parar em Washington por causa de um convite pessoal. Como havia uma incerteza internacional do que Lula representaria como governante, ele optou por me manter no cargo para mostrar aos Estados Unidos que, pelo menos no primeiro ano, o seu governo seria de continuidade, sem grandes mudanças na política internacional", comenta.

O livro esmiuça, em forma de memória, os bastidores do complicado processo de aproximação do Brasil com a nação mais poderosa do mundo nos primeiros anos da década de 2000. Esse relato, que inclui farto material documental cedido pelo Centro de Documentação e Pesquisa sobre História do Brasil da Fundação Getúlio Vargas, é essencial para entender como o governo brasileiro alcançou prestígio nos Estados Unidos e, por consequência, em outras nações importantes.

"Não se faz política externa dando alfinetadas nos Estados Unidos", ressalta Barbosa, citando uma das grandes lições que aprendeu nos seis anos em que esteve no cobiçado cargo. O livro traz informações da política internacional até os primeiros meses do governo de Dilma Rousseff. Leia a seguir comentários de Barbosa sobre o desempenho da função de embaixador em Washington.



Maiores experiências no cargo

Sem dúvida, foram duas: a eleição do presidente George W. Bush, que mudou radicalmente do regime liberal para o ultraconservador, e os ataques terroristas do 11 de setembro. As guerras do Afeganistão e do Iraque também marcaram. E do ponto de vista diplomático, a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ajudei na transição do governo Fernando Henrique Cardoso e isso me marcou muito. No livro, conto com detalhes como foi a relação dos dois governantes brasileiros com os presidentes norte-americanos.

A visão que os americanos têm do Brasil

A opinião pública dos Estados Unidos sempre viu o nosso país de modo muito positivo. Há um estudo feito pela Universidade de Chicago mostrando que o Brasil está entre os países mais apreciados pelos americanos, principalmente por causa de ícones do esporte, como Pelé e Ayrton Senna. Mas ainda há muita falta de informação, os americanos sempre ligam o Brasil à beleza das nossas praias e à exuberância da Amazônia. Do ponto de vista do governo, o Brasil e toda a América Latina passam despercebidos, porque não são prioridades da política externa norte-americana. Nesse campo, ainda existem estereótipos ligados ao Brasil, como a inflação galopante e o não pagamento da dívida externa.

Eleição de Lula

Nos três meses que antecederam a eleição de Lula, havia uma grande preocupação do governo norte-americano, porque o PT sempre cresceu em cima de uma plataforma radical. O partido pregava o calote da dívida externa, dizia que ia acabar com a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), além de bradar que os Estados Unidos eram uma potência imperialista. Isso só veio mudar depois que o Lula lançou a "Carta aos Brasileiros". Eu tive muito trabalho para traduzir esse documento e tranquilizá-los de que não se tratava de um governo tão radical quanto a história nos mostrava. Apesar das mudanças do PT e da carta de Lula, as incertezas aumentaram nos três meses do governo porque a mídia passou a transmitir à opinião pública uma visão muito negativa do novo governo. Com o tempo, essa imagem radical foi se dissipando. O mercado se convenceu que o PT faria um governo de continuidade pelo menos nos primeiros anos. Com a queda da inflação e do risco-Brasil no governo Lula, os norte-americanos passaram a confiar no nosso país.



Um tucano no ninho petista

Apesar de ser do grupo de Fernando Henrique Cardoso, era estratégico o PT me manter no cargo de embaixador em Washington. Primeiro, porque o Lula precisava mostrar aos Estados Unidos que a sua política externa era de continuidade, já que estávamos navegando num mar de incertezas. Não era interessante mostrar naquele momento um cenário de ruptura. Dois dias depois da posse de Lula, tive uma reunião com Lula em Brasília em que ele me orientou de forma expressa que era para dar continuidade à política externa desempenhada no governo de Fernando Henrique. Essa orientação prevaleceu de 2003 a 2005. Nesse período, o governo brasileiro começou a pôr em prática uma série de atos que caracterizavam uma certa confrontação com os Estados Unidos, como a criação de órgãos de integração internacional sem a presença de representantes norte-americanos, como a União de Nações Sul Americanas (Unasul). A posição do Brasil, que se disse contra um conflito armado no Irã, em 2003, também soou como desafio aos Estados Unidos, além de outras posições.

Oportunidades perdidas

O período em que o governo brasileiro passou a manter a política de enfrentamento aos Estados Unidos ganhou o título de "oportunidades perdidas". O nosso país perdeu grandes oportunidades de fazer grandes negócios com os norte-americanos, principalmente na área de tecnologia e inovação. Diversas empresas de lá deixaram de investir aqui por causa de certas posições que o governo Lula tomou entre 2005 e 2006. O Brasil perdeu, mas pelo menos o governo brasileiro manteve coerência ideológica, já que a prioridade na política externa era o relacionamento com os países em desenvolvimento. O afastamento brasileiro dos Estados Unidos em determinado período do governo Lula causou um déficit na balança comercial de mais de US$ 8 bilhões por causa da falta de incentivo, principalmente nas exportações daqui para lá. No início da década passada, 25% da produção brasileira eram exportadas para os Estados Unidos. No ano passado, esse índice fechou perto de 10%.

A reaproximação

As atitudes do Brasil que representavam um desafio aos Estados Unidos não abalaram definitivamente a relação entre os dois países. O fluxo de turistas entre os dois países nunca diminuiu e as relações comerciais nunca quebraram a qualquer conserto. Aos poucos, Lula costurou uma boa relação com os norte-americanos. Isso se deve muito à sua biografia de homem pobre, que saiu de uma família pobre do Nordeste, e a seu carisma incontestável. Lembro que vários presidentes chegavam aos Estados Unidos relatando as promessas genéricas que fazem em seus países, como "vou reduzir a desigualdade" ou "vou acabar com o desequilíbrio". Nenhum deles falava algo concreto. Já o Lula chegou aos Estados Unidos dizendo a Bush que reduziria a pobreza dos brasileiros e mostrando como faria isso, detalhando o programa Fome Zero. Ele comoveu ao dizer que, no fim do seu governo, todo brasileiro estaria fazendo três refeições diárias. A figura de líder renovador da esquerda democrática ajudou a mudar esse quadro. Isso tudo era visto com muita simpatia pelos norte-americanos também por conta do contexto da época. Como o Lula não é um político convencional, ele acabou atraindo atenção da mídia internacional. Isso ajudou muito a fazer dele um líder internacional reconhecido, com o qual seria interessante o governo norte-americano manter um diálogo franco e aberto.

O DISSENSO DE WASHINGTON

De Rubens Barbosa. Editora Agir, 368 páginas. Preço: R$ 59,90. Lançamento hoje (quarta), às 19h, na Livraria Saraiva (Shopping Pátio Brasil).

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