postado em 23/10/2011 12:49
Até a Idade Média, o azul era uma cor que não merecia muito crédito. Era desprezada, quando não ridicularizada. Os gregos e romanos antigos não tinham sequer uma palavra para defini-lo. Foi só a partir dos séculos 11 e 12 que começou a se fazer notar: primeiro, quando comoveu os cristãos ; estava no manto da Virgem Maria, por exemplo. Depois, ao conquistar os adeptos do Romantismo. Quando imaginou os trajes do herói de Os sofrimentos do jovem Werther (1774), Goethe escolheu um casaco azulado. Desde então, o azul se tornou fenômeno, tingindo roupas e obras de arte. De tal modo que, no meio do século 20, foi promovido a símbolo para os sentimentos de uma geração. A introspecção, o silêncio e a melancolia eram sintomas de quem estava ;blue; ; um estado de espírito em tom menor, sussurrado pelos solitários.
Na música pop, a cor inspirou canções como Blue valentines, Blue kisses, Way to blue. E, no auge da popularidade, acabou se instalando no título do disco que melhor captou a ;azulzice; de uma época, entre o fim dos anos 1950 e o início dos anos 1960. No livro Kind of blue ; Miles Davis e o álbum que reinventou a música moderna, o escritor inglês Richard Williams destrincha o clássico azul-profundo, que se tornou uma das obras mais influentes da história da música. ;Para muitas pessoas, esse é o único álbum de jazz na estante;, observa o autor, no primeiro capítulo. ;Seu crescente sucesso ao longo de 40 anos é um processo orgânico completo, a consequência de suas virtudes intrínsecas e de seu apelo singular a uma camada especial do espírito humano;, afirma.
Williams cinge o céu de Miles Davis com um itinerário incomum. Não quer reconstituir minuciosamente o processo de criação do disco (ela já foi narrada várias vezes, em ótimos textos como Kind of Blue ; A história da obra-prima de Miles Davis, de Ashley Kahn, lançado no Brasil). Nem pretende desmontar o mito, expondo contradições e exageros que álbuns cultuados costumam acumular com o passar do tempo. O repertório da prosa é mais amplo e flexível, como se o jornalista improvisasse em torno das gravações para ;encontrar conexões, identificar influências diretas, examinar correspondências e localizar pré-ecos interessantes e coincidências intrigantes;. Daí uma longa pesquisa sobre a cor azul, por exemplo. O jornalista, que hoje escreve sobre música e futebol no jornal britânico The Guardian, parece tomar ao pé da letra uma lição do músico: a criação pode ser um mergulho no abismo.
;Os movimentos musicais às vezes recebem suas definições a partir de correntes quase imperceptíveis, da mesma forma que por grandes obras;, explica o autor. É misteriosa, portanto, a jornada de um disco que, registrado em apenas dois dias ; numa igreja convertida em estúdio, em Manhattan ; atravessou camadas de gosto como nenhum outro. Kind of blue pode ser encontrado na estante preferida dos colecionadores de jazz, em restaurantes chiques, no iPod do estudante de arquitetura e do poeta ;outsider;, em elevadores e consultórios de dentista. Parece até um paradoxo: como uma sonoridade tão ;blue; se tornou tão amada? ;É o som mais singular que existe e, ao mesmo tempo, está em todas as partes. É o som do isolamento, que alcança milhões de pessoas;, nota Williams.
Fenômeno
Explicar esse apelo irresistível exige malabarismos. Davis, o ;jovem Werther do jazz;, gravou vários discos antes e depois de Kind of blue. Atuou em muitas reformas que alteraram o jazz no século passado, creditado como um dos inventores do cool jazz, o hard bop e o jazz fusion. Mas nenhum álbum do trompetista de Illinois reverberou com tanta naturalidade, contaminando gerações. ;Como as ondas formadas por uma pedra atirada numa lagoa, o efeito causado por Kind of blue se espalha para muito além de seu ambiente imediato;, compara Williams. A partir dos anos 1990, quando o jazz encontrou um novo público, o álbum se tornou a principal referência para se assimilar o gênero, acima de gênios como Charlie Parker e Louis Armstrong. Apenas nos Estados Unidos, vendeu cerca de 4 milhões de unidades e rendeu uma série de reedições ; o maior sucesso da história do estilo musical.
A revolução de Kind of blue foi, em certo alcance, técnica: ao lado do compositor e melhor amigo Gil Evans, Davis abandonou os ciclos convencionais de acordes que sustentavam as canções populares. No lugar deles, usou uma série de harmonias lentas, ou mesmo estáticas, abrindo espaços para a contemplação. A ;improvisação modal;, que já havia sido testada em discos anteriores do músico, ganhou expressão máxima no álbum de 1959. Foi a partir desse projeto, inspirado nos estudos do pianista George Russell, que Davis guiou um sexteto formado pelos pianistas Bill Evans e Wynton Kelly, pelo baterista Jimmy Cobb, pelo baixista Paul Chambers, pelos saxofonistas Julian ;Cannonball; Adderley e, é claro, John Coltrane.
Referências
Não é apenas de inovações sonoras, no entanto, que se faz uma lenda. Por isso Williams desenha uma árvore genealógica para o álbum, cujas raízes embrenham referências de filosofia oriental e do blues (outra nuance azul da obra) e cujos galhos se alargam ainda hoje, acolhendo bandas como Velvet Underground, The Police e Radiohead, além de Toru Takemitsu, Steve Reich, Philip Glass e Brian Eno, entre tantos outros. Quando foi lançado, Kind of blue provocou surpresa, admiração e alguma desconfiança. ;É o disco de música ambiente mais supervalorizado que existe;, atacou o crítico Richard Cook. Mas já sugeriu uma névoa de espanto que se conectava perfeitamente a uma juventude em mutação. ;O som do trompete de Miles Davis, introvertido, sombrio, ácido, recusa-se a desaparecer. Eu ouvi o futuro, e ele soava terrível;, resumiu o romancista Kingsley Amis. Que poderia ter dito isso hoje. Já que o azul de Davis não esmaece.
; SAIBA MAIS
Homem do jazz
Filho de uma confortável família de classe média, Miles Dewey Davis III nasceu em Atlon, Illinois, em 26 de maio de 1926. A mãe, pianista de blues, queria que o menino aprendesse piano. Mas o pai, para espezinhar a esposa, o presenteou com um trompete e o matriculou em aulas com o músico local Elwood Buchanan, que ensinou sobre a elegância das melodias ;redondas;, despidas de muitos efeitos.
Começou a estudar música aos 13 e aos 16 já tocava profissionalmente, quando não estava na escola. Dois anos depois, ao se matricular no Conservatório Juilliard, em Nova York, integrou-se rapidamente a uma cena musical fervilhante.
Nos anos 1940, integrou o quarteto do ídolo Charlie Parker. Mas foi a partir dos anos 1950 que, no comando de grupos de jazz, não se cansou de redefinir o gênero. Apesar dos tumultos do cotidiano (viciou-se em heroína e, depois, cocaína), fundiu o jazz ao estilos como rock e funk, produzindo clássicos como Bitches brew (1970) e Big fun (1974). A partir de 1975, o músico entrou numa fase reclusa, desacelerando um processo criativo até então intenso. Morreu em 28 de setembro de 1991, aos 65 anos, com o sistema respiratório comprometido por uma pneumonia.
KIND OF BLUE ; MILES DAVIS E O ÁLBUM QUE REINVENTOU A MÚSICA MODERNA
De Richard Williams. Traduzido por Fal Azevedo. Editora Casa das Palavras, 286 páginas. R$ 39,90.
; TRECHO DO LIVRO
;Quando você se apaixona por Kind of blue, você não para de comprá-lo, um fato que os detentores de seus direitos autorais comerciais reconheceram há muito tempo. Periodicamente, porém, o disco se ergue muito acima de qualquer tentativa de transformá-lo em fetiche. Sempre que o disco é tocado, não importam as circunstâncias, fornece maiores evidências de que sua essência permanece intocada, um raro exemplo de perfeição humana, de algo que nunca precisa erguer sua voz para se fazer ouvir, mas que fala cada vez mais claramente com o passar dos anos.;