Diversão e Arte

Nelson Motta escreve sobre o período de formação do cineasta Glauber Rocha

Nahima Maciel
postado em 24/10/2011 08:00

Glauber Rocha com a câmera pronta para filmar na Bahia, na foto feita pelo amigo Luiz Carlos BarretoQue Nelson Motta ama doidões libertários, quase todo mundo sabe. Ele embarca fácil em navios lotados de gente que não se encaixa e adora histórias de jovens artistas crentes no poder da juventude quando se trata de mudar o planeta. Mas Motta também adora final feliz. O problema aparece quando os doidões não encaixam. Por isso, o crítico e escritor resolveu colocar um fim precoce em A primavera do dragão. Os últimos anos de Glauber Rocha foram difíceis e o fim, bastante triste. Motta preferiu então contar a juventude do cineasta.

Ele tentou fazer isso pela primeira vez em 1989, mas foi barrado pelo pudor quando descobriu que Zuenir Ventura embarcara na mesma viagem. Uma fatalidade mudou o projeto dos dois escritores. As anotações de Ventura para a biografia de Glauber foram roubadas (com o carro dele) e o jornalista perdeu todo o material. Anos depois, autorizou Motta a seguir adiante com o livro.

A primavera do dragão é, portanto, produto maturado. O autor precisou de 22 anos e sete livros publicados para deixar a ideia amadurecer e sedimentar. A única coisa de que tinha certeza era de não querer tratar da parte triste da vida de Glauber. ;Seus últimos anos e sua morte foram muito duros e sofridos. E, como o amava muito, para mim seria um sofrimento relatá-los, Deus me livre! Gosto de alegria, de leveza, de humor, de poesia (também nas biografias). Por isso, escolhi os anos de sua formação, e floração, contando como ele se tornou Glauber Rocha.;

Nelson Motta conheceu o baiano em março de 1964, durante a pré-estreia de Deus e o diabo na terra do sol. O escritor era louco por cinema, embora estudasse design. ;Fomos amigos de toda a vida;, garante. A primavera do dragão começa com o encontro entre os pais do cineasta, Lucinha e Adamastor, no interior da Bahia, e dá especial destaque aos anos de faculdade e à descoberta do cinema. No colégio e na faculdade, a turma de Glauber reunia a nata da intelectualidade baiana. João Ubaldo Ribeiro e Calazans Neto eram constantes nas farras e nas discussões revolucionárias do grupo em Salvador, mais tarde incrementado por Cacá Diegues, Luiz Carlos Barreto e Luiz Carlos Maciel, quando Glauber já morava no Rio de Janeiro.

Glauber Rocha decidiu fazer cinema após assistir a Rio 40 graus, de Nelson Pereira dos Santos. Durante uma viagem de férias ao Rio de Janeiro, comprou uma câmera com o dinheiro da venda de dois bois, presente do padrinho por ter passado no vestibular para o curso de direito. Aos 19 anos, fez o primeiro curta-metragem. Sem narrativa, música, histórias ou símbolos, influenciado pela poesia concreta, ele imaginou para Pátio um roteiro destinado a explorar formas geométricas e sombras. Na tela, a então namorada, Helena Ignez, contracenava com um colega da Escola de Teatro da Ufba (a Universidade Federal da Bahia). O desfile de sequências sem enredo era uma experiência. Glauber queria fazer ;cinema em estado puro; e uma ode à beleza da namorada.

O filme foi exibido na casa de Ligia Pape, no Rio de Janeiro, e teve como plateia o séquito da arte concreta. Ferreira Gullar, Hélio Oiticica, Amilcar de Castro e o crítico de arte Mário Pedrosa assistiram ao curta e deram início ao falatório em torno do nome de Glauber. Surgia ali o Cinema Novo, que dias depois estaria descrito em manifesto publicado no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, reduto concretista da capital carioca. Três anos depois, o cineasta conceberia o primeiro longa. Barravento, de 1962, seria a estreia internacional de Glauber no mundo do cinema. Dois anos mais tarde, viria o reconhecimento em Cannes, com a seleção de Deus e o diabo na terra do sol. Foi nessa consagração que Motta decidiu encerrar o livro, em clima de happy end assumido e escrachado.

Entrevista com Nelson Motta

O livro tem algo de cinematográfico. Escreveu pensando em um roteiro?
Nunca penso em cinema quando escrevo, já basta imaginar as cenas como num filme para escrevê-las. Acho que pode atrapalhar, não ficar nem um livro nem um roteiro. Meu instrumento é a palavra escrita, embora a imaginação seja muito cinematográfica, pela minha formação.

Como você encara o livro? É uma biografia, uma crônica, uma reportagem?
É uma biografia, mas não acadêmica, não chata, não pesada. Tem linguagem de romance de geração, tem humor, tem emoção, mas ali tudo é verdade ; ou, pelo que pesquisei e ouvi de testemunhas, acredito que seja. Como Orson Welles acreditava. Mas tem também um sabor de crônica de uma geração. O encontro marcado, de Fernando Sabino, foi o primeiro livro ;adulto; que li, e amei, aos 13 anos. Adoro histórias de turmas de jovens artistas.

Muito da imagem que ficou de Glauber ganhou o imaginário das pessoas a partir da consagração em 1964. Por que parar o livro exatamente aí?
Porque já estava com mais de 300 páginas;A ideia foi essa desde o início, porque dramaturgicamente era muito bom, no capítulo final, o jovem discípulo confrontar o seu mestre, como Glauber fez com Nelson Pereira dos Santos, quando um concorreu com Deus e o diabo e o outro, com Vidas secas, no Festival de Cannes de 1964, a copa do mundo do cinema, ao mesmo tempo em que acontecia o golpe militar no Brasil. Era um ótimo roteiro.

Em que o cinema de Glauber Rocha mudou sua maneira de ver o mundo?
Com Deus e o diabo, senti uma emoção parecida com a de ouvir João Gilberto cantando Chega de saudade pela primeira vez. Era novo, era livre, era muito brasileiro e de um padrão internacional, eu nunca tinha visto nada parecido. O público aplaudiu diversas vezes ;em tela aberta;, como no teatro, com a música de Villa-Lobos, a montagem estonteante; Foi um novo mundo, 24 quadros por segundo.

Sua amizade com Glauber era igual à amizade com Tim Maia?
(Risos) Em certos aspectos; Eu amo doidões libertários, artistas talentosos, figuraças, e tive o privilégio da amizade de Glauber e Tim, dois briguentos, bastante agressivos, mas que comigo sempre foram doces e divertidos. Adoro esse ;amor dos brutos;, tem até mais valor do que o dos doces. Os dois só fizeram o que quiseram, quando e do jeito que quiseram, me deram lições permanentes de liberdade e independência; e pagaram o preço. Tenho muita saudade dos dois. O Brasil, que anda tão careta, também.

O que você apontaria de mais contraditório no cineasta? Foi difícil explorar alguma faceta?
Acho que ele vivia de suas contradições, sabia que era muitos, em permanente transformação, um ser múltiplo, movido a paixão. Não tive que explicar nada, o que ele fez, disse e escreveu é que conta a sua história. Eu só redigi.

Sua amizade com o biografado não atrapalha um pouco a objetividade?
Meu primeiro impulso para escrever uma biografia é o afeto, contar a história de pessoas que amo e admiro, que conheci bem. Tanto que nem remotamente tenho planos de outras biografias. Bem, talvez o Paulo Francis, com quem tive esse envolvimento profundo, de mestre, amigo e companheiro.

Você diz que não estava maduro para escrever o livro em 1989. O que o fez ficar mais maduro em relação ao livro?
E não estava mesmo. Nesse período, escrevi sete livros ; romances, memórias, biografias ;, estava muito mais preparado para escrever. Nem que eu fosse uma besta, estaria escrevendo melhor. Também amadureci emocionalmente, tive tempo para procurar as formas de melhor contar essa história, que muitas vezes beira o inverossímil, com um personagem eletrizante, emocionante e hilariante, que faria a alegria de qualquer ficcionista.

Leia um trecho do livro A primavera do dragão, de Nelson Motta:

"Nas sessões domésticas para os amigos, em Salvador, provocava grande admiração por sua audácia, mas também muita estranheza. Era difícil argumentar. Contra ou a favor. Como comentá-lo usando os valores e critérios cinematográficos tradicionais, ou mesmo modernos? Não havia como atribuir simbolismos e intenções aos personagens, que pareciam não ter história nem sentimentos. Não havia nada d e político nem de social, eram formas que se moviam lentamente em pura plasticidade, nos enquadramentos e movimentos de câmera, ao ritmo de uma montagem que não narrava um enredo, mas era o resultado das contradições dialéticas entre os planos e sequências. Sua ambição era ser cinema em estado puro, atingir o "específico filmíco". No Bar do Maciel, Paulo Gil sintetizou:


"Apesar de ser um tanto estranho o filme não ter histórias nem simbologias, ele é, como sempre pensamos e ambicionamos, o cinema-cinema."


Aproveitando a oportunidade de um congresso de cineclubes em São Paulo, e a companhia de Walter da Silveira e sua mulher, Glauber botou a lata de Pátio na maleta e viahou com Helena, que queria fazer compras para o enxoval. Escândalo e estupor na família baiana. Se viajavam juntos, então se comprovava a suspeita geral: dormiam juntos."

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