Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Dia D, em homenagem a Carlos Drummond de Andrade, se espalha pelo país

Há 109 anos, Carlos Drummond de Andrade nascia na pequena Itabira, cidade mineira de noites brancas e ferro nas calçadas, que um dia viraria um doloroso retrato da saudade dependurado em sua parede. A nostalgia do poeta é experimentada pela legião de leitores que até hoje reverenciam sua vasta produção literária, composta de poesia, prosa, crônicas e contos. Homenagens ao poeta ocorrerão em vários pontos do país. Para celebrar o aniversário desse gênio que lutou toda a vida com as palavras, o Sebinho, localizado na CLN 406, decidiu dedicar dois dias (hoje e amanhã) de programação especial a ele. Batizada de Dia D, a celebração contará com pocket shows, recitais de poesia, exibição de filme e até um cardápio recheado de quitutes típicos de seu estado natal.

A programação começa às 18h, com Hugo Lacerda e a pianista Jéssica Macoratti comandando um pocket show que mistura músicas (Eu te amo, de Chico Buarque, e Praias desertas, de Tom Jobim, por exemplo) com poemas como Amar e O amor bate na aorta, de autoria do itabirano. Em seguida, tem início uma roda de conversa sobre a poesia de Drummond, mediada por Luiz Carreira e Alexandre Pilati, ambos do Departamento de Literatura da Universidade de Brasília (UnB).

Pilati lançou o livro Nação Drummondiana, sobre a presença do Brasil na obra do mestre. ;Sua grande contribuição é ver o Brasil e escrevê-lo a partir de um prisma fortemente crítico. Não uma crítica fácil, mas algo que envolve as forças vigorosas da dinâmica brasileira, e que parecem não passar. Ele enfrenta essas questões por dentro;, avalia ele. Para encerrar a noite, que ainda terá iguarias como costelinha de porco, tutu de feijão, couve, pães de queijo e café saindo da cozinha a todo momento, o poeta Hézio Teixeira fará a declamação de poemas clássicos, como Confidência do Itabirano e José. Amanhã, o tributo continua, no mesmo horário, com a leitura de poemas e exibição de filme.

Camisetas
A loja estará repleta de murais e livros do poeta. Uma coleção de camisetas, de autoria da artista plástica Michelle Cunha (com uma caricatura de Drummond e trecho do poema Sentimento do mundo), também estará à venda no local. Para completar os mimos, os funcionários da loja desenvolveram uma linha de guardanapos com poemas e desenhos, feitos à mão. ;Fizemos o Bloomsday, em homenagem ao James Joyce, e pensamos em fazer o mesmo para celebrar os escritores brasileiros;, destaca a proprietária do Sebinho, Cida Caldas, que pretende incluir a comemoração ;drummondiana; no calendário cultural de Brasília.

A cidade não é a única a se curvar diante da saudade do poeta. Até mesmo os representantes máximos da literatura nacional se voltam hoje para o que sua pena produziu. Às 15h30, a Academia Brasileira de Letras (ABL) fará uma sessão especial, com a leitura de poemas, interpretados pelos acadêmicos Ivan Junqueira, Antonio Carlos Secchin e José Murilo de Carvalho. ;Ninguém imaginava que aquela poesia poderia ser escrita. Drummond tinha uma capacidade de tornar lírico todo o cotidiano. Ele também mergulhou na vida política, era reflexivo, um grande pensador. Não à toa foi considerado o poeta maior;, destaca o jornalista, poeta e crítico literário Ivan Junqueira, que lerá o poema O caso do vestido durante a sessão na ABL, no Rio de Janeiro.

Tributos em várias cidades
O Rio, cidade que abrigou o poeta por mais de cinco décadas, também preparou suas homenagens. Além da leitura na ABL, o Instituto Moreira Salles, na Gávea, preparou seu Dia D. O projeto tem a curadoria de Eucanaã Ferraz e Flávio Moura, e inclui a participação de diversos famosos e anônimos lendo poesias de Drummond. Na capital fluminense, livrarias, escolas e universidades também prestarão loas à lírica de Drummond. Os tributos se espalham ainda por São Paulo, Belo Horizonte, Itabira (MG)
e Paraty (RJ).

Poemas
Ausência
Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais
de mim.

Memória
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão

Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.

Três perguntas // Armando Freitas Filho
Severino francisco

O carioca Armando Freitas Filho, considerado um dos maiores poetas brasileiros vivos, começou a ler Carlos Drummond aos 15 anos e nunca mais parou. Ele classifica a poesia de Drummond como a sua segunda pele e fala sobre a perenidade da poesia do vate mineiro.

Podemos falar de Carlos Drummond à queima-roupa?
É sempre melhor falar de Drummomd à queima-roupa, ele sempre está à flor da pele. Drummond é a minha segunda pele.


E por quê?
Por que a sesnbillidade dele não é cerebrina; é epidérmica. Quando eu tinha 15 anos, ganhei um disco do meu pai em que no lado A havia Manuel Bandeira recitando os poemas dele e, no lado B Carlos Drummond. Bandeira era considerado o grande poeta, que de fato era, e Drummond, um poeta encrencado. Acho que a grande façanha intelectual de minha vida foi ter passado do lado A para o lado B. Nunca terminei, ler Drummond é uma tarefa infinita. Agora mesmo, estou escrevendo um texto e preciso consultar Drummond nas minhas estantes caóticas para ver com que palavras ele descreve determinadas situações.


O que considera mais espantoso em Drummond?
O fato de que ele é um poeta multifacetado. O texto que abre o seu primeiro livro chama-se Poema de sete faces. Mas ele foi modesto, pois tem muitas mais faces e interfaces. Há um verso dele que expressa muito bem essa condição: "De todos os prismas de uma joia/Quantos há que não presumo?! Representa não apenas as multifaces de sua poesia como também de sua personalidade humana, que era interessantíssima. Sou um dos poucos que o conheceram e ainda está vivo.


O que era interessante nele do ponto de vista humano?

Ele era um supermineiro, reticente, irônico, driblador. Drummond é um verdadeiro Garrincha. Sempre falava com ele ficava surpreendido com algo. Certa vez, ele me disse que um poeta só tem o livro na mão quando sabe os poemas que começam, jogam no meio e fecham o livro. Isso, na verdade, a vida de um escritor nos vários livros que ele vai compondo.


Por que você afirmou que os livros de Drummond se parecem com a Bíblia?

Na verdade, eu diria que os livros dele são uma bíblia. Na minha juventude vivendo na casa de uma família católica havia um livrinho chamado A imitação de Cristo. Os meus pais diziam que ha hora em que estivesse aflito e abrisse o livro encontraria um consolo e uma resposta. Sempre fiquei na dúvida porque o conteúdo era muito genérico. Mas nos livros do Drummond você encontra mesmo as respostas para os sentimentos e os dilemas humanos.


Poderia dar um exemplo?
Quando o Drummond morreu, eu e o Hélio Pelegrino fomos entrevistados no cemitério. Eu disse que Drummond era maior do que o Brasil. O Hélio declarou que não se entenderia como gente sem a poesia do Carlos. Ela traz a qualquer pessoa que a leia a fundo uma visão da vida mais geral e da mais imanente. Drummond passa do trivial para o metafísico em um átimo. No poema Nudez, ele escreve: "Não cantarei amores que não tenho/ e quando tive nunca celebrei./Não cantarei o riso que não rira e que se risse ofertaria aos pobres." Mas no verso seguinte, ele diz: "Minha matéria é o nada". Num estalar de dedos, ele nos lança no ar rarefeito da transcendência.


Guimarães Rosa disse que lia alguns autores pela literatura, mas Clarice Lispector, era pela vida. É possível dizer o mesmo de Drummond?
Clarice e Carlos Drummond foram um casal perfeito, ele com o olho azul de bola de gude e ela com aquela beleza asiática. Se morassem na mesma casa, iam passar voando um pelo outro. Mas, na verdade, a gente lê os dois tanto pela literatura quando para a vida, pois são bifrontes. Assim como a gente não lê Grande Sertão: Veredas apenas pela peripécia linguística, mas também pelo drama humano do amor impossível.


A poesia de Drummond anunciou e prenunciou um mundo terrível de desumanização e de maquinização do homem. Como vê o confronto da poesia dele com o nosso mundo pós-moderno?

Acho que a poesia dele se sai muito bem no confronto porque foi escrita para sempre. Ilumina o que é mais cotidiano e menos excepcional. Você lê um poema como A bomba e parece que foi escrito hoje.


Que poema ou verso de Drummond representaria melhor para você os tempos que estamos vivendo?
O poema A flor e a nausea. Ele diz: "Melancolias, mercadorias espreita-me". Mas destacaria o verso final sobre a flor que vara o asfalto: "É feia, mas é uma flor, furou o asfto, o tédio, o nojo e o ódio. " É um verso matador. Se Drummond fosse toureiro, teria matado o touro.

Dia D ; Homenagem a Carlos Drummond de Andrade Hoje e amanhã, a partir de 18h, no Sebinho (406 Norte, BL. C; 3447-4444). Entrada franca. Classificação indicativa livre.

VEJA A PROGRAMAÇÃO COMPLETA:
Segunda:
18h ; Pocket Poético com Hugo Lacerdda (voz) e Jéssica Macoratti (piano)
19h ; Conversas sobre a poesia de Drummond ; Professores Alexandre Pilati (Unb) e Luiz Carreira (acasa ; Escola Contemporânea de Humanidades)
20 ; Declamação de poemas de Drummond ; com Hézio Teixeira
Terça:
18h ; Declamação do poema "O caso do vestido" ; Jéssica Naara, Fernanda Silva e Verônica Silva
19h ; Exibição do filme "O poeta de 7 faces" ; do diretor Paulo Tiago