;Meus heróis não são mais neuróticos do que o público. Se não sentirmos que o herói é tão ferrado quanto nós e que poderíamos cometer os mesmos erros, não teremos qualquer satisfação quando ele de fato realizar um ato heroico;, diz Nicholas Ray, num trecho do documentário Uma viagem com Martin Scorsese pelo cinema americano (1995). A declaração é precisa: na telona, o cineasta projetou personagens ambíguos, equilibrados nas fronteiras delicadas que separam o certo e o errado. Fracasso e sucesso. Filho desordeiro de Hollywood, ele recebe, no centenário do seu nascimento, retrospectiva integral e gratuita no Centro Cultural Banco do Brasil, de hoje a 13 de novembro. De Brasília, a mostra O Cinema é Nicholas Ray parte para Rio de Janeiro e São Paulo.
A seleção recupera sua criação mais popular, Juventude transviada (1955), um dos três longas da curta e poderosa carreira de James Dean, produções obscuras, como o experimental We can;t go home again (1973), nunca finalizado e inédito no Brasil, e o documentário sobre seus últimos dias de vida, Um filme para Nick (1980), codirigido com o alemão Wim Wenders. Para Eduardo Cantarino, curador ao lado de Thiago Hatari, as projeções preenchem uma lacuna importante dos cinéfilos brasileiros, que nunca tiveram acesso total à cinematografia de Ray. ;Ele esteve na passagem do cinema clássico para o moderno. Só que nunca foi muito exibido no Brasil. Queremos abrir os olhos do público para outras grandes obras dele;, explica.
À flor da pele
Ray esteve longe de ser um diretor assediado por produtores endinheirados dos estúdios. Mesmo rodando nos Estados Unidos, comportava-se como um marginal. ;Não pegava os projetos mais caros, nem era um dos cabeças. Não era muito aceito porque tinha um processo de realização diferente, uma relação diferente com o roteiro, o tempo de filmagem e a direção de atores. Ele quebrou as regras;, define o organizador. Seguindo os passos dos grandes da época, como o amigo Elia Kazan, entregou-se à película sem reservas, fazendo filmes de gênero à sua maneira.
Foi um mestre discreto do noir, com destaque para O crime não compensa (1949) e No silêncio da noite (1950), ambos com o galã Humphrey Bogart, de Casablanca (1942). Sua incursão mais conhecida no faroeste, Johnny Guitar (1954), mal recebido na época, encabeçou a lista de referências dos membros da Nouvelle Vague francesa, movimento estético liderado por Jean-Luc Godard e François Truffaut. Em voos ambiciosos, conduziu as aventuras Horizonte de glórias (1951) e Sangue sobre a neve (1960), jornadas bélicas, como Amargo triunfo (1957) e o épico 55 dias em Peking (1963), uma das poucas atrações no formato DVD, e até uma cinebiografia sobre Jesus Cristo, O rei dos reis (1961).
;Jim Jarmusch, que foi aluno dele, Godard, dono da frase que inspirou o título da mostra, e outros grandes fãs admiram o vigor de filmagem de Ray. Ele parece estar completamente aberto nos filmes. Expõe contradições que humanizam os personagens. O herói é o vilão, que não é o vilão;, observa Cantarino. Um homem que viveu e morreu no limite.
Não perca
No silêncio da noite (1950)
Humphrey Bogart encarna Dixon Steele, um roteirista em crise que se vê como principal suspeito de um assassinato. Até que Laurel Gray (Gloria Grahame), sua vizinha, entra em defesa do pobre escritor. Apesar do reconhecimento tardio nos EUA, foi adorado por críticos e cineastas franceses nos anos 1950, que já consideravam Ray um autor de filmes importantes. Primeira sessão: amanhã, às 21h.
Johnny Guitar (1954)
A durona Vienna (Joan Crawford), proprietária de um bar no Arizona, alimenta desentendimentos constantes com homens da região. Seu protetor é Johnny ;Guitar; Logan, ex-amante e velho conhecido. ;Exemplo de um filme pequeno que adquiriu status de clássico. Não há realmente filme como este;, definiu Martin Scorsese sobre uma de suas principais influências. Primeira sessão: sábado, às 19h.
Juventude transviada (1955)
São muitos os elementos que fazem deste um clássico: a morte precoce de James Dean antes do lançamento, a estreia de Dennis Hopper, que anos depois faria Sem destino (1969), uma espécie de versão psicodélica do filme de Ray, e a fotografia de Ernest Haller, com vermelhos escandalosos. Sob os cuidados do diretor, a juventude delinquente dos anos 1950 reflete mais amargura do que teimosia. Primeira sessão: hoje, às 20h50.
We can;t go home again (1973)
Longa-metragem experimental, nunca concluído. Ray divide a autoria com alunos da Universidade de Binghamton, Nova York. A mostra exibe o primeiro corte, projetado no Festival de Cannes, em 1973 (única sessão em 13/11, às 19h), e uma versão restaurada em digital, que esteve no último Festival de Veneza (12/11, às 17h, e 13, às 21h). Susan Ray, viúva e 40 anos mais jovem que o realizador, participa de seminário e apresenta o documentário Don;t expect too much (2011), sobre os bastidores do título (única sessão em 12/11, às 15h30).
Um filme para Nick (1980)
Dirigido em parceria com Wim Wenders, um de seus vários discípulos, o documentário flagra os últimos dias de vida de Ray, que morreu em 1979, em Nova York, fragilizado por um câncer no pulmão em estágio avançado. Exibido fora de competição em Cannes. Única sessão: 10/11, às 19h.
O CINEMA É NICHOLAS RAY
De hoje a 13 de novembro, no CCBB (SCES, Tc. 2, Lt. 22). Entrada franca, mediante retirada de ingressos na bilheteria. A classificação indicativa varia de acordo com os filmes. Sessões de hoje: às 15h, Quem foi Jesse James? (93min, 14 anos); às 17h, Sangue ardente (85min, 12 anos); às 19h, O crime não compensa (100min, 14 anos); às 20h50, Juventude transviada (111min, 14 anos). Informações: 3108-7600 e bb.com.br/cultura.
Assista ao trailer do filme Juventude transviada:
Assista ao trailer do longa Um filme para Nick: