Nahima Maciel
postado em 06/11/2011 08:00
A inclusão social pela música é uma tendência mundial. Hoje, boa parte das favelas brasileiras abriga projetos cujo trabalho ajuda a criar perspectivas inusitadas para crianças e jovens carentes. A maioria desses programas não faz distinção entre os estilos e investe, principalmente, no popular. Poucos são focados na música erudita. Mas o papo que relega esse gênero aos guetos ;elite; e ;inacessível; encontrou o caminho do silêncio. Violinos, flautas, Mozart e Beethoven também podem salvar vidas. Delicadeza não é sinônimo de fragilidade e, em muitos casos, tem tanta força que consegue resultados surpreendentes. O Correio fez um mapeamento dos projetos de música erudita focados na inclusão social por todo o Distrito Federal; encontrou quatro experiências que tiraram crianças e jovens da rua e revelaram sonhos até então desconhecidos. Abaixo, as experiências desenvolvidas por gente que enxerga a música como caminho revelador.
Doce Estrutural
Udson Douglas Teixeira tem 14 anos e nunca havia tocado ou visto de perto um violino até o ano passado, quando descobriu o Reciclando Sons. Morador da Estrutural, o garoto se revezava entre a escola, o negócio de reciclagem de madeira do pai e a televisão. Trocou tudo por Bach. Em menos de dois anos, Douglas é capaz de tocar trechos inteiros (e bastante complicados) do Concerto para dois violinos, obra do compositor alemão. ;Esse projeto foi uma das melhores experiências da minha vida. Se não estivesse fazendo isso, estaria em casa vendo tevê. Aqui na Estrutural, tem muita criança que não tem o que fazer e vai pra rua.;
Douglas é uma revelação do Reciclando Sons e um exemplo da filosofia de Rejane Pacheco, coordenadora do projeto. ;Devido às dificuldades dele no dia a dia, ou vai ou racha. Aqui, não dá para ver se vai dar certo. Eles têm que ser os melhores porque a gente quer que sejam os futuros professores da comunidade;, explica. O projeto nasceu em 2001 e atende hoje a 100 crianças graças ao patrocínio da Bancobrás, Comitê SOS Cidadania da Câmara dos Deputados e da empresa Memora.
As aulas são diárias e divididas em estágios que vão da musicalização à profissionalização. Nessa última etapa, o aluno se torna também monitor e, eventualmente, tem direito a bolsa. Bruno Araújo, 22, conseguiu deixar o supermercado no qual trabalhava para monitorar crianças do Reciclando. Começou com o canto, passou pelo violino e hoje toca violoncelo. A meta é o contrabaixo. ;A música erudita trabalha a concentração, a subjetividade. As crianças acabam desenvolvendo a razão, a emoção e a psicomotricidade. Isso pode trazer uma transformação de vida e ajuda a se tornar um cidadão melhor;, acredita o rapaz, estudante de pedagogia e morador da Estrutural.
Contato: reciclandosons@yahoo.com.br.
Cordas em São Sebastião
Aos sábados, Joaldo Kassai troca a sala do Teatro Nacional por uma varanda em uma pequenina creche em São Sebastião. Ali, chova ou faça sol, o violoncelista da Orquestra Sinfônica recebe um grupo de 25 crianças e adolescentes para aulas de cordas. Eles são os melhores alunos do projeto Música das Esferas e começaram a aprender violino e violoncelo há três meses com a missão de formarem, no futuro, uma pequena orquestra. Até julho deste ano, os alunos estudavam apenas flauta. Graças ao Sesi, parceiro no projeto, as cordas chegaram a São Sebastião.
Isabel Campos, 9 anos, é uma das mais jovens do Música nas Esferas. Já passou pela flauta e, finalmente, chegou a violino. Ainda tem dificuldade em não cruzar os pés enquanto arrisca os acordes de Asa branca e a cara séria denuncia a maneira como encara o instrumento. ;Desde criança, tenho esse sonho de tocar, então veio essa oportunidade e comecei;, conta a menina, filha de um porteiro e uma dona de casa. ;O mais difícil é pegar o arco na postura certa.; Isabel tem o direito de levar o violino para casa durante a semana. Estuda diariamente e faz acrobacias para não deixar a irmã mais velha brincar com o instrumento. ;Não deixo ninguém pegar;, avisa.
Em casa, Alessandra Araújo, 13 anos, dedica pelo menos duas horas ao violino todos os dias. Aluna da sétima série, filha de uma monitora e órfã de pai, ela vê no instrumento uma porta para o futuro. ;Ainda não sei o que quero ser, mas tenho vontade de fazer faculdade de música e ter a chance de tocar em uma orquestra;, conta a adolescente, que caminha quase 30 minutos, todos os sábados, para assistir às aulas. Às vezes, as aulas a céu aberto sofrem com o barulho da rua. É comum a música alta que vem de um quintal vizinho, mas as crianças ficam tão concentradas que nem parecem se importar.
No cantinho do teatro
Mylla Medeiros, 20 anos, não sabia que podia comprar um violino por R$ 300. Descobrir foi uma revelação. Trabalhou como menor aprendiz e fez curso de massagem para conseguir clientes. Ainda contou com a ajuda de um amigo, mas conseguiu. Com o violino na mão, começou a desenhar o sonho de tocar o instrumento. Do salário de aprendiz, tirava os R$ 40 para aulas particulares e, aos poucos, trocou o sonho de ser médica pela música.
As aulas particulares começaram a pesar no orçamento doméstico ; Mylla precisa ajudar a mãe, que está desempregada ; e ela quase viu a faísca se apagar quando conheceu o Viva Arte Viva, programa de aulas e oficinas de música gratuitas da Orquestra Filarmônica, bancado pela Associação dos Amigos das Artes de Brasília Brasil. Uma vez por semana, Mylla tem aulas gratuitas com o violista Mario Romanini, integrante da sinfônica do Teatro Nacional. ;Passei dois anos tentando entrar para a Escola de Música de Brasília (EMB) por sorteio. Aí comecei o estudo com o professor Mario e consegui entrar pelo teste;, revela Mylla. ;Cresci no Rio de Janeiro numa família muito pobre e nunca tive oportunidade de conhecer outras coisas. Em Brasília, comecei a ir às apresentações gratuitas da orquestra, mas eu achava que violino era muito caro. Me apaixonei, tanto pelo instrumento quanto pela vida de violinista.;
Mylla só lamenta não ter descoberto o projeto mais cedo. ;Se minha mãe tivesse me levado quando eu tinha 6 anos, hoje estaria formada. Estou correndo atrás do tempo perdido porque quero ser violinista.; As aulas com Romanini acontecem no Teatro Nacional e são em grupo, mas as alunas consideram particular. Mylla tem a companhia de Caroline Sodré, 22, e Anna Gabriella Costa Campos, 18, que também encontraram refúgio para o sonho no Viva Arte Viva. ;Muita gente não sabe que é um instrumento acessível e que tem projetos com aulas particulares gratuitas, coisa raríssima;, diz Carolina. Contatos: ofb@ofb.org.br Fone: 3223-2845 site: www.ofb.org.br
Escola de dois professores
O maestro Emílio de Cézar começou timidamente, em parceria com o Instituto Batucar do Recanto das Emas. Agora, deu um salto. Numa esquina do Itapoã, no Paranoá, ele inaugurou a Escola de Música Maestro Emílio de Cézar, um prédio de três andares, que, neste mês, começa a receber 120 crianças para aulas de música. Montada com apoio do Centro de Integração Social da Família e da Criança (Cisfac), a escola tem como público alvo os jovens em situação de vulnerabilidade e já conta com 100 instrumentos entre cordas, teclado e guitarra. No corpo docente, apenas o maestro e a esposa. ;Essa escola é um sonho antigo meu;, avisa Emílio. ;Acreditamos que outras pessoas virão nos ajudar. Por enquanto fizemos tudo só com doações.;
O maestro acredita que o conhecimento musical tem o poder de incluir qualquer cidadão e a música erudita é uma porta para oportunidades profissionais. ;É um campo de trabalho importante. Vamos fazer música, seja ela clássica, erudita seja popular. Claro, não vamos ter logo no início meninos tocando como em uma orquestra profissional. Isso leva tempo. Mas a música é um elemento aglutinador de tudo e traz o trabalho em grupo, o respeito mútuo, a disciplina e não é um bicho de sete cabeças.; Para saber mais, acesse www.cisfac.org.br.
Sorteio ou teste
A Escola de Música de Brasília (EMB) é uma instituição pública e tem cursos que vão da iniciação musical à formação profissional. Para conseguir uma vaga, é preciso participar de um sorteio ou fazer um teste. Esse último só funciona se o aluno já tiver estudado algum instrumento. As seleções acontecem mediante edital, geralmente no início do ano.