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Reedição de O duplo, de Dostoiévski, evidencia o espírito inquieto do gênio

postado em 12/11/2011 08:10

imagem da capa do livro <i>O duplo</i>, de Fiódor DostoiévskiO tema do duplo, a cisão do eu em duas partes, o outro que se esconde na face bifronte do bem e do mal, do homem e da mulher, do amor e do ódio, já está em Platão, quando, em O banquete, Aristófanes (As vespas e As nuvens) resgata o mito do andrógino e lembra que Zeus dividiu o homem em dois por temer a sua presunção de poder. Estabelece, portanto, que as duas metades deste homem indiferente aos castigos deverão passar a vida inteira tentando se encontrar: ;Eu os cortarei em dois, assim eles serão mais fracos e também mais úteis pelo fato de se tornarem mais numerosos;.


O outro que se bifurca em herói e anti-herói, em ser ou não ser, ou em derrisão da própria imagem pelos seus atos, já está em Miguel de Cervantes, quando Dom Alonso Quijano põe em movimento o seu duplo, Dom Quixote de La Mancha, ao lado de Sancho Pança. Se o tema do duplo inaugura nas tragédias gregas antigas as formas rudimentares do que Freud chamaria depois de psicanálise, Fíodor Dostoiévski reelabora, com maestria de um jovem gênio, esse jogo de máscaras e de contradições da alma humana em uma obra de juventude na qual ele já demarcava o território de grandes criações, isso em 1846, quando completara apenas 25 anos. Pois é com O duplo ; vertido diretamente do idioma russo para o português, por Paulo Bezerra ; que o autor de Crime e castigo coloca à prova a semente de sua vasta galeria de romances, novelas e contos.


O duplo foi escrito logo em seguida a seu romance de estreia ; Gente pobre ;, considerando-se a data em que apareceu nas mãos do leitor russo, em 1; de fevereiro de 1846, duas semanas após a publicação da obra de revelação. Mas, ao contrário do primeiro, este não logrou lá êxito de crítica e público. Talvez por tratar-se de um texto além dos códigos de aceitação do leitor comum. Quem lê este romance, porém, logo pressente que ele estava inscrito na linhagem de produção de grandes autores como Gogol, Púchkin, Tchecov, cravada no templo das pequenas obras-primas. Quem o lê, compreende, de imediato, por que o pai da psicanálise via em Dostoiévski o precursor de suas teorias.


O romance relata as aventuras de Yákov Pietróvitch Golyádkin ; um solitário conselheiro titular: figura de inexpressivo valor na hierarquia russa do funcionalismo público, que jamais poderia alçar a categorias mais elevadas em um país devastado pela mediocridade cultural e humana. Uma terra tragada pela injustiça social devido a elevados desequilíbrios de renda. De certa maneira, como apontam estudiosos de sua obra, Dostoiévski sentia-se deslocado em uma nação dominada por uma burguesia de baixo nível intelectual e indiferente à própria gente.


Para entender melhor a relação entre o individual e o social da Rússia desse tempo é imprescindível a leitura do posfácio ;O laboratório do gênio;, escrito pelo tradutor, e do capítulo sobre O duplo na biografia de Dostoiévski assinada por Joseph Frank (Edusp, 1999), em que o autor revela certos aspectos históricos da vida cotidiana do reino em frangalhos dos czares e põe em relevo, com mais detalhes esclarecedores, a consciência atormentada do escritor em relação à frivolidade cultural da época.

Consciência inquieta
Para perceber este, entre outros sintomas da personalidade do escritor, lembramos o trecho recuperado pelo biógrafo no qual ele se refere à própria situação de escritor: ;A vida na Rússia não deixava nenhuma saída para o ego afirmar-se normalmente, e, por isso, o caráter russo não desenvolveu um senso positivo de dignidade pessoal;. Aqui, Dostoiévski está falando também de Golyádkin (que em russo significa ;completamente nu;), alter ego do mesmo ; um homem enrodilhado em uma teia sufocante de dúvidas em relação a si próprio. ;Sou ridículo e desagradável, e sempre sofro com as conclusões injustas que fazem a meu respeito;, confessa.


Essa sentença do homem Dostoiévski remete o espírito do leitor à atmosfera catártica da obra quando este constrói um Golyádkin asfixiado pela sede de companhia e trucidado pela solidão. Um personagem cindido entre a ambição, a falsa modéstia, o caráter dúbio e as explosões de apelos. ;Eu, Crestian Ivanóvitch, caminho em linha reta, sem desvios, porque os desprezo e os deixo para os outros. (...) Não gosto de meias palavras; a mísera hipocrisia me desgosta; abomino a calúnia e a bisbilhotice. Só ponho máscaras quando vou a um baile de máscaras (...);, afirma Golyádkin, em um dos tantos diálogos quase incompreensíveis, diante do seu médico, que, estupefato, se esforça para entender o sentido daquela visita inesperada, sem hora marcada, fruto de um prenúncio do desmonte psicológico do seu paciente.


Aquele que o narrador da obra faz questão de chamar ;nosso herói; está a caminho, sem ter sido convidado, de uma festa de aniversário da bela Clara Olsufiévna, filha única do conselheiro de Estado Beriendêiev, pertencente à alta burguesia. Em sua indisfarçável perturbação, Golyádkin também se imagina pretendente à mão da jovem. No meio do caminho, porém, resolve ter uma conversa com o médico, sendo essa, provavelmente, o gatilho que aciona o princípio de seu distúrbio mental.
Golyádkin sai da casa do médico em direção à residência de Clara, mas, chegando lá, é enxotado pelos criados. Consegue entrar na mansão pela porta dos fundos, mas apronta o maior escarcéu, até ser expulso de novo. No entanto, certo de que estava sendo injustiçado e até mesmo perseguido por seus inimigos imaginários, ele empreende uma fuga de si mesmo e daquela vida de aparências para se deparar consigo próprio com a mente em desordem e exposto a mais um ciclo de delírio e tormento ; que tem seu ponto de partida quando encontra o seu duplo.


Golyádkin corre por uma avenida que vai dar em uma ponte, quando, de repente, divisa um vulto. Este, aparentemente, o segue, mas o nosso herói cria coragem e trava contato. Resolve levá-lo para casa, onde percebe, surpreso, que o outro era igual a ele. Após os episódios até aqui resgatados percebe-se que o personagem cria o Golyádkin II por excesso de solidão, ausência de afeto e desejo de se comunicar ; mesmo que o outro venha a destruí-lo. Ele está tão imerso em suas suposições e disperso em suas certezas que a sua outra metade vem a calhar para que exercite suas qualidades românticas, humanas e ingênuas, em uma sociedade que não admitia mais que um gesto de subserviência para alguém ser aceito nas altas rodas.


Esse tema, aliás, será mais elaborado em romances como Os demônios e Os irmãos Karamázov, O idiota e em Memórias do subsolo. Como bem o define Bezerra, ;a duplicidade radica no pavor do homem diante da vida e se manifesta em formas de cisão;, como as que enredam o personagem em dúvidas bastante sugestivas da personalidade do autor.


Sabe-se que a família Dostoiévski vivia em grandes e eternas dificuldades financeiras, embora pertencesse a um ramo esquecido e falido da aristocracia rural. Seu pai, o doutor Dostoiévski, era um médico de relativo valor na escala da nobreza russa e possuía mais criados em casa do que seu salário suportaria. Da mesma maneira, Golyádkin, escrivão e copista do governo russo, vivia com o dinheiro contado, mas, ainda assim, mantinha em seu poder um criado, e cometia certos exageros vez ou outra.


Quando decide ir à festa dos Beriendêiev, o penetra Golyádkin aluga uma carruagem e exige que o serviçal use uma libré, só para tentar se igualar à nobreza que tanto criticava. E passa a agir contra os próprios princípios de moralidade e ética social. Neste ponto, Dostoiévski empreende um jogo de contradições que será bastante frequente em suas obras posteriores.

Na sutil transformação que dá passagem à personalidade paranoica do protagonista, vemos um Golyádkin certo de que o sósia prepara um golpe para demiti-lo e que deseja substituí-lo. O gêmeo indesejável, de repente, assume um cargo na mesma repartição e passa a pregar-lhe peças. Em determinado momento, ;nosso herói; entra em um restaurante para comer um petisco e, de repente, quando vai pagar a conta, o garçom avisa-lhe que ele comera 11 roscas e não apenas uma. Golyádkin então vê o outro no balcão, limpando os lábios com um guardanapo com um sorriso. Além de passar pela suspeita de ser um caloteiro, Golyádkin sai do lugar humilhado, mas resolve enfrentar o seu duplo.

Além de seu tempo
Não é difícil prever que Golyádkin perde a batalha. O duplo vence e a personalidade dual do protagonista se esfacela até que sucumba na última página. Entre outros aspectos, destaca-se no texto, como sintoma de gênio, a ousadia da linguagem em uma época que oferecia ao leitor e à crítica descrições bem comportadas de climas e personagens e narrações afinadas no tempo cronológico, na arquitetura do começo, meio e fim. Nesta obra, porém, até o tempo desaparece das páginas que o leitor traça com espanto e ansiedade diante da vertiginosa escalada ao desatino do protagonista.


Em O duplo, já é possível enxergar o autor que Mikhail Bakhtin batizou como o criador do romance polifônico ; em que a mistura de vozes dentro de um mesmo entrecho de narração dialoga com outras vozes sem se sujeitarem ao narrador principal. Diante de tantas evidências de sua competência literária, não é demais afirmar o escritor russo como precursor do fluxo da consciência e do monólogo interior. Dostoiévski se antecipa a Joyce e a Edouard Dujardin (1841-1949), autor de Os loureiros estão cortados (1888), o possível introdutor desses recursos linguísticos. No campo da psiquiatria, vemos em Golyádkin sinais claros do que hoje chamam transtorno bipolar afetivo, esquizofrenia, paranoia e outros conceitos da psiquiatria moderna.


Para perceber a lógica na ilação, basta o leitor atentar para a confusão de eloquência nos diálogos de O duplo, como expressão da corrosão mental a caminho. No texto, o excesso de reticências e de interjeições, a desordem de raciocínio e de articulação do discurso denotam a perplexidade e a derrocada de um ser em desalinho. Há que se atentar ainda aos monólogos interiores ; que denunciam, como em Ulisses, estados mórbidos da alma e da mente, ou ;psicofisiológicos;, para citar uma expressão de Victor Manuel de Aguiar e Silva, em Teoria da literatura ; e uma excessiva liberdade no uso de termos em sintonia com a dicotomia do eu.


Ao passar as páginas desse livro, entrevê-se também a herança do russo na Jacobina do conto ;O espelho;, de Machado de Assis, que afirma ter o homem duas almas, uma interior e outra exterior; em Riobaldo e Diadorim, de Grande sertão: veredas; ou em O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson. E certamente vai concordar com Zeus quando partiu o homem em dois para que ele passasse a vida inteira procurando a si mesmo.

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