Parte da história do Brasil será revista pela 1; Jornada do Cinema Negro de Brasília. Até domingo, uma amostra da produção cinematográfica brasileira de temática negra será exibida no Plano Piloto, em São Sebastião, no Varjão, na Estrutural e em Ceilândia. Hoje, às 20h, o longa-metragem de Joel Zito Araujo (Cinderelas, lobos e o príncipe encantado) e o curta de Jaqueline Fernandes (Afrobrasilienses) abrem a maratona no Cine Brasília. Na Ceilândia, o filme Brodér, de Jefferson De, é a atração principal no CED, às 19h30. Em comum, essas obras são imbuídas pelo desejo de discutir identidades negras no país.
Viés muito diferente do praticado no Brasil no início do século 20, quando os negros eram representados como criaturas ;idiotizadas e mesquinhas;. Naquela época, era ;natural; que atores brancos pintassem os rostos de tinta preta e ocupassem os papéis de negros. Essas contradições suscitaram dúvidas elementares. Se nos primórdios do cinema, no final do século 19, a imagem era captada em preto e branco, por que insistir na inferiorização do negro na representação cinematográfica?
No livro O negro brasileiro no cinema, o pesquisador João Carlos Rodrigues traça a história da representação do afrodescendente no cinema brasileiro e aponta evoluções. ;Os personagens negros ou eram subservientes ou eram cômicos como os de Grande Otelo. Hoje em dia, não tem praticamente esse tipo hilário. As tramas passaram a ser mais realistas. Além disso, o negro passou da frente das câmeras para atrás. A coisa mais interessante foi isso. Eles se tornaram diretores e roteiristas;, enumera.
[SAIBAMAIS]
Na esteira das reivindicações sociais das décadas de 1960 e 1970, em que o movimento do Cinema Novo filiou-se a grandes intérpretes como Milton Gonçalves e Ruth de Souza, os negros puderam encarnar papéis de destaque em tramas que discutiam a situação social brasileira.
Cinema elitista
Outros nomes despontaram na mesma época. O carioca Zózimo Bulbul, 74 anos, iniciou a carreira como ator de teatro no Centro Popular de Cultura (CPC), da UNE. Bulbul construiu uma sólida carreira com participações em praticamente todos os títulos marcantes do cinema brasileiro negro. Seu nome figura nos créditos de filmes importantes como Terra em transe (1967), de Glauber Rocha. Ele é um dos primeiros diretores a trabalhar com o tema da consciência negra. Em um dos curtas-metragens que dirigiu, A alma no olho, de 1973, atua num monólogo sobre a história da escravidão no Brasil. Nele, a cor do protagonista é contrastada com um fundo totalmente branco. A fita foi censurada pela ditadura.
Em 1988, Bulbul fez um balanço crítico dos 100 anos de assinatura da Lei Áurea, no documentário de longa-metragem Abolição. ;Eram os 100 anos da lei e ninguém falava nada. Parecia até que não tinha negro no Brasil;, relembra. Atualmente, ele preside o Centro Afrocarioca de Cinema. Qualquer ator, roteirista e diretor no Brasil com o mesmo currículo de Bulbul chegaria aos 50 anos de carreira com o mínimo de prestígio adquirido com a experiência. Não é o que o veterano alega encontrar.
Em conversa telefônica, o artista liberou parte da indignação por não conseguir filmar um longa-metragem há mais de 20 anos. ;Bato na porta dos ministérios e secretarias e me olham de cara feia. Tudo mudou para pior. A cada edição, é mais complicado conseguir verba para realizar o Encontro de Cineastas Negros da América do Sul e Caribe. Um contigente enorme de negros não acredita no que eu estou fazendo e os brancos consideram que é uma ousadia. Gostaria de exercitar mais a minha profissão. Mas o cinema é um lugar branco, racista e elitista;, ressente-se.
1; JORNADA DO CINEMA NEGRO DE BRASÍLIA
Hoje, às 20h, no Cine Brasília, Cinderelas, lobos e o príncipe encantado e Afrobrasilienses). Não recomendado para menores de 16 anos. Às 19h30, no CED 11 (EQNP 1/5, Setor P Norte). Afrobrasilienses e Brodér. Não recomendado para menores de 14 anos. Entrada franca. Até domingo, programação no Plano Piloto (Cine Brasília), São Sebastião (Colégio Centrão), Varjão (Galpão de Eventos), Estrutural (Praça Central) e Ceilândia (CED 11). Consulte a programação completa e as classificações indicativas diariamente no roteiro do Diversão & Arte.
Caricaturas persistem
Autor do livro A negação do Brasil: o negro na telenovela brasileira, o cineasta Joel Zito Araujo condena alguns dos estereótipos paternalistas com que os negros são apresentados até hoje no cinema e na tevê. ;Eles atrapalham na medida em que insistimos na fantasia de ser um país nascido para ser branco e mantendo o estereótipo da subalternidade como condição natural do negro. Observo que uma grande parte dos autores de telenovelas e uma parte relevante dos roteiristas de cinema continuam tendo uma relação limitada com a contribuição civilizatória negra no Brasil. Escapam-lhes a complexidade de mundo e o olhar diferente vivenciado por essas pessoas;, resume.
Araujo é doutor em comunicação pela ECA/USP e diretor de vários documentários sobre o tema do racismo. Em 2004, dirigiu o longa-metragem de ficção As filhas do vento, com elenco totalmente negro. ;A arte que se autodefine como negra sempre esteve colada às reivindicações sociais negras. Também sou um irmão e companheiro de viagem. Mas gosto de uma arte que, mesmo identificada com as causas negras, cultua a independência, a capacidade de criticar pontos de vista e atitudes existentes dentro da própria comunidade negra;, observa.
Brasil e o preconceito velado
No livro Multiculturalismo tropical, o pesquisador norte-americano Robert Stam traçou paralelos históricos entre a formação dos Estados Unidos e a do Brasil e a influência na cinematografia dos dois países. Uma diferença fundamental, segundo o autor, tem raiz cultural e política. Assim como o racismo social na América protestante sempre se apresentou de maneira explícita, o cinema norte-americano produziu títulos em que a ideologia racista era apresentada sem máscaras. Um dos exemplos descende do período mudo, quando D.W. Griffith lançou O nascimento de uma nação (1915), um filme de conteúdo histórico. Transformada num manifesto racista, a película foi usada como objeto educativo e doutrinário pela temida seita Ku Klux Klan durante anos.
Abaixo da linha do Equador, o preconceito sempre foi colocado de forma velada. Existiram alterações ao longo dos anos. Lançado em 1998, o documentário de Brasília, Atlântico negro ; A rota dos orixás, dirigido por Renato Barbieri, viajava até a África para entender as raízes afrobrasileiras. O filme virou referência no cinema negro e hoje é usado como ferramenta didática. ;A temática negra hoje em dia é obrigatória. A história da África e do negro brasileiro está nos currículos escolares. Desde o lançamento do filme, há 12 anos, a situação mudou bastante;, resumiu Barbieri.
Ele aponta o trabalho de Jefferson De e Joel Zito Araujo como referências. Nos dois casos, os cineastas trabalham a questão negra de forma indireta e tentam fugir de estereótipos midiáticos brasileiros. ;O marginalismo não está ligado diretamente à raça, e sim a uma situação social. No Brasil, as duas coisas se confundem. Por exemplo, a população carcerária é formada por 70% a 80% de negros. Filmes em que os personagens negros sejam todos engenheiros, médicos e advogados refletem menos da realidade brasileira do que o marginalismo. Existe o problema do negro marginalizado. Do meu ponto de vista, o cinema deve mostrar;, completa João Rodrigues.
A terceira edição do livro de Rodrigues, O cinema brasileiro e o negro, deverá ser lançada em 2012 com acréscimos no conteúdo, analisando a nova fase do cinema brasileiro nesta primeira década do século 21, que inclui, por exemplo, o ciclo da favela.
Confira o trailer de Brodér, de Jefferson De: