Diversão e Arte

Espetáculo Filha da anistia mergulha na memória da ditadura militar

postado em 25/11/2011 09:10

Carolina Rodrigues e Alexandre Piccini em cena de Filha da anistia, de hoje a domingo, na Sala Villa-Lobos

No fim dos anos 1990, a atriz Carolina Rodrigues assistiu a um espetáculo que ficou zanzando em seu subconsciente durante muito tempo. Era a peça Lembrar é resistir, de Analy Álvarez e Isaias Almada, encenada nas antigas dependências do Departamento de Ordem Política e Social (Dops). O duro retrato da ditadura fez com que a atriz e o marido, o também ator Alexandre Piccini, se interessassem por esse período obscuro da história do país. ;É um assunto pouco debatido na escola. Na vida social e política, é quase um tabu;, defende Piccini. A vontade de jogar luz sobre estes anos dolorosos da história nacional acabou por gerar a peça Filha da anistia, que chega a Brasília em curta temporada, de hoje a domingo, às 20h, na Sala Villa-Lobos do Teatro Nacional, com entrada franca.

A personagem-título da peça é a advogada Clara, criada pelos avós, sob a crença de que, após a morte da mãe, o pai a havia abandonado. Antes de morrer, a matriarca da família deixa um endereço desse homem, e Clara decide procurá-lo. ;A partir desse encontro, o passado começa a vir à tona e tudo que ela acreditou é baseado em uma série de mentiras, de omissões e de silêncios;, descreve o ator e coautor do texto. Nenhum dos dois idealizadores do projeto teve experiências diretamente traumáticas ou parentes desaparecidos que justifiquem a decisão de remexer o passado. Eles apenas acreditam que muitos problemas que afetam a vida de todos os brasileiros, nos campos da segurança, educação e cultura, por exemplo, têm raízes nesse tempo.

Em vez de dar um enfoque cru à temática da ditadura, a saída encontrada foi suavizar as tintas, investindo em um jogo teatral poético e lúdico. ;O tema é duro e violento, falamos sobre tortura e violência, então tentamos fazer com que as pessoas se aproximem, não se afastem. Não há sangue ou armas em cena;, afirma Piccini, que vive Jorge em dois momentos distintos de sua vida: em 1964, e no reencontro, em 1985. Carolina interpreta a protagonista Clara, e, no passado, a mãe, Iara. Em determinadas cenas, a dupla faz referências às tragédias gregas, que correm em paralelo com a história desenvolvida no palco. Para Piccini, essa mitologia concentra a base de todos os arquétipos e situações vividas ainda hoje.

Documentos de época
A pesquisa durou três anos, em que os realizadores passaram mergulhados em documentos da época e literatura que a recria. Uma das bases para a construção do texto foi a série de quatro livros sobre a ditadura escritos pelo jornalista Elio Gaspari. Brasil: nunca mais, de Dom Paulo Evaristo Arns, também auxiliou no mergulho rumo aos porões do regime. Visita obrigatória durante o período de levantamento de dados foi o Museu, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, local onde o Dops funcionava (e a peça que iniciou todo o processo foi encenada). Em um momento posterior, entrevistaram sobreviventes, exilados e pessoas ligadas à questão.

Na trama ficcional que construíram, há referências ao papel da cultura, aos jovens da época, aos sindicatos, camponeses, trabalhadores, a esquerda e a direita. Mas não há uma referência objetiva a determinados dramas pessoais. Todos os episódios foram livremente recriados a partir do acúmulo de informações. Um dos inspiradores, no entanto, encampou a ideia e passou a participar dos debates posteriores à peça. É Alípio Freire, jornalista, preso político durante a ditadura. Ele também participará do debate em Brasília, ao lado de José Geraldo de Sousa, reitor da UnB, de vítimas da ditadura e representantes de diversos órgãos do governo federal, como a Presidência da República.

FILHA DA ANISTIA
Espetáculo dirigido por João Otávio. Com Alexandre Piccini e Carolina Rodrigues. De hoje a domingo, às 20h, na Sala Villa-Lobos do Teatro Nacional (SCTN, Via N2 ; 3325-6256). Entrada franca, mediante apresentação de ingressos, distribuídos uma hora antes da apresentação. Não recomendado para menores de 12 anos.


COMISSÃO DA VERDADE
; O ator e coautor do texto, Alexandre Piccini, acredita que o Brasil ainda precisa avançar muito no esclarecimento dos fatos que assombraram o país durante a ditadura. Segundo ele, a maior contribuição é dada pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, que recupera o material da época. Em outubro passado, foi aprovado o projeto de lei que cria a Comissão da Verdade, que investigará os crimes ocorridos no período. ;Agora, começaremos a falar mais sobre o tema;, defende Piccini. A intenção seria que o espetáculo tivesse sua estreia marcada para 2009, ano em que a Lei da Anistia completou 30 anos. Por um atraso na agenda, a peça chegou aos palcos no ano seguinte.

Teatro passeia entre gêneros

As transformações contemporâneas, além do campo político e econômico, atingem o campo social, ou seja, modificam as relações, os comportamentos e as definições de identidade relacionadas ao corpo e à sexualidade. Ao estudar a temática da identificação sexual, o performer Gabriel Nunes criou a peça Transanima, que será exibida no I Encontro TransArte, na Universidade de Brasília (UnB) e na qual ele também atua.
Kael Studart desafia-se para transpor Almodóvar da tela para o palco
A montagem estreou em Amsterdam, no ano de 2009, e será exibida pela primeira vez no Brasil. A encenação, autobiográfica começa com um corpo ;anulado de gênero; ou de definições de masculino e feminino. Depois, a personagem começa a se aproximar das características femininas por meio de gestos e movimentos de dança.

Segundo ele, os conceitos estão defasados e, por isso, a intenção é proporcionar um ;outro olhar;. ;Trato o tema como um parque de diversões, pois gênero não é uma coisa tão importante para nossa personalidade quanto se parece, é uma coisa externa a nós colocada pelas instituições de poder; por isso a abordagem é mais lúdica.; Assim Transanima propõe visões alternativas, sem obedecer a essa dicotomia; homem e mulher, ou um ou outro.

O diretor confessa que não pretendia reapresentá-la, mas percebeu poucas discussões sobre o assunto no Brasil, onde os preconceitos ainda estão presentes de forma significativa: ;Assim como essa peça me libertou de certos conceitos, espero que as pessoas consigam absorver isso. Sempre digo que o único efeito colateral dessa peça é uma reação de liberdade;.

Cores de Almodóvar
Outra montagem teatral promovida pelo TransArte, que também aborda questões de identidade sexual, é Labirinto de desejos, escrita e dirigida pelo estudante de artes cênicas da UnB Kael Studart, de 21 anos. A inspiração para criar a peça surgiu da admiração pelo diretor espanhol Pedro Almodóvar, conhecido por explorar nos filmes o universo homossexual, transexual, feminino e algumas neuroses. ;Ficava pensando em cenas que vinham na minha memória e queria falar daquele mundo, daqueles momentos;, diz Kael.

A partir de colagem de cenas, tiradas de títulos como A lei do desejo, Labirinto de paixões e Mulheres à beira de um ataque de nervos, e de diálogos inéditos é contada a história de sete personagens que têm as vidas entrelaçadas em momentos tragicômicos, obedecendo à estética de Almodóvar: figurinos coloridos e trilha sonora marcante. ;Eu não criaria isso sozinho. Pesquisei minuciosamente, vi entrevistas para entender melhor o mundo dele. Não é fácil transpor o cinema para o teatro. Por exemplo, para valorizar detalhes que não poderiam ser vistos pela plateia, vão ser colocadas cinco televisões no palco que pegarão essas expressões;.

As referências podem ser ilustradas na personagem Carmem Paredes (junção dos nomes de Carmem Maura e Marisa Paredes, atrizes que trabalharam com o diretor espanhol), umas das mulheres heroínas.
Gabriel Nunes anula os conceitos de masculino e feminino

TRANSANIMA
Direção e atuação: Gabriel Nunes, no Anfiteatro 9 (ICC Sul, Universidade de Brasília). Domingo, às 14h. Entrada franca. Não recomendado para menores de 16 anos.


LABIRINTO DOS DESEJOS
Direção e texto: Kael Studart. Com Diana Cunha, Diego Rodrigues e Gustavo Gris. Anfiteatro 9 (ICC Sul, Universidade de Brasília). Amanhã, às 19h. Entrada franca. Não recomendado para menores de 16 anos.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação