Depois de 15 anos dedicados à gravação de discos ao vivo (foram quatro, um deles em dois volumes) e de projetos especiais voltados às composições de Cartola e Nelson Cavaquinho, Beth Carvalho volta a lançar um álbum de inéditas ; o último foi Brasileira da gema, de 1996. Com arranjos de Rildo Hora e Ivan Paulo, Nosso samba tá rua reúne criações de compositores da nova e da velha guarda, resgata a folia do bloco Cacique de Ramos e homenageia a imperatriz do samba, Dona Ivone Lara. ;A música Em cada canto uma esperança é uma obra-prima de Dona Ivone com seu parceiro mais importante, Delcio Carvalho. Já foi gravada, mas fiz questão de tê-la no disco. Ela é uma das compositoras mais importantes do Brasil e tenho um grande carinho por ela;, elogia Beth.
A saudade do Cacique é anunciada já na capa do CD, onde aparecem reunidos os maestros, os músicos e os compositores que fizeram parte das gravações, e os integrantes do grupo Fundo de Quintal, um dos vários afilhados da cantora (que não por acaso é chamada de ;madrinha do samba;). A fotografia, de Guto Costa, é inspirada no antológico LP De pé no chão, lançado em 1978. Com produção de Rildo, ele foi um divisor de águas na carreira da artista carioca ao colocar no samba o repique de mão, o tantã e o banjo de Ubirany, Sereno e Almir Guineto, então recém-descobertos nas batucadas de Ramos, bairro da zona norte do Rio de Janeiro.
Típico dos desfiles na Avenida Rio Branco, o som dos tamancos foi representado no samba de bloco Chega, de Leandro Fregonesi e Rafael dos Santos. A dupla faz parte do time de compositores da nova geração que a madrinha trouxe em algumas faixas do 33; disco. Amigos de outros carnavais, Almir Guineto, Arlindo Cruz, Sombrinha e Zeca Pagodinho também marcaram presença em Tambor, Se vira e Guaracy. O último, uma crônica bem-humorada sobre um português com nome de índio. Além de compositor, Zeca também dá uma canja em Arrasta a sandália, partido alto de Dayse do Banjo com Luana Carvalho, filha de Beth.
Minha história ; dos italianos Lúcio Dalla e Paola Pallottino, com versão de Chico Buarque ; fecha o CD e mantém a tradição da cantora em gravar canções do artista carioca (Meu guri, Apesar de você, Vai passar são indispensáveis no repertório de Beth). ;É uma canção maravilhosa, que sempre esteve nos meus shows, no começo da minha carreira. Fazia um grande sucesso e está forte na minha memória afetiva. Sempre fico emocionada quando canto. Ela é a cereja do bolo;, comenta.
Relíquia
Entre várias músicas inéditas, um tesouro se destaca no repertório de Nosso samba tá rua. É a faixa Palavras malditas, de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, gravada uma única vez por Ari Cordovil, em 1957, e esquecida desde então. ;É praticamente inédita e uma obra-prima. Como ela é muito trágica, como tudo do Nelson, pedi para o Rildo Hora um novo arranjo, com uma introdução como um tango do (Astor) Piazzolla e ele fez divinamente.; A gravação original é uma das raridades que a cantora tem em casa e que, em breve, vão ganhar um lugar apropriado com a criação do Instituto de Samba Beth Carvalho.
O projeto ; com traços de Oscar Niemeyer ; deve ficar próximo ao cais do porto, no Centro do Rio de Janeiro. ;Expus esse plano para o prefeito do Rio, Eduardo Paes, e ele ficou de marcar outra reunião comigo para conversar melhor sobre o assunto. É um instituto onde eu teria meu acervo, porque moro num acervo (risos). Não tenho mais espaço para guardar tudo. Não tem mais parede para pregar quadro, eu não tenho mais gaveta para botar cifra. Então, será um acervo para outros sambistas também. Terá exposição de quadros, um teatro, e o Bethquim, que é um botequim, que não pode faltar;, adianta.
CRíTICA - NOSSO SAMBA Tá NA RUA *** ; Como era de se esperar
Rosualdo Rodrigues
Nosso samba tá na rua é previsível. No entanto, não há nessa afirmação sentido depreciativo. É previsível porque tem tudo que se poderia esperar de um bom disco de Beth Carvalho ; o que é o mesmo que dizer um bom disco de samba. Tarimbada, a cantora carioca revela a intimidade que tem com o assunto tanto na ótima seleção de repertório quanto na distribuição das músicas ao longo do álbum. Mantém um pique contagiante até a altura da sétima faixa. E aí, quando o ouvinte já está completamente tomado, ela dá uma quebrada, desacelerando propositalmente o ritmo na romântica (mas não menos animada) Tô feliz demais (Edinho do Samba).
Cantando bonito e com o vigor de sempre, Beth é acompanhada por uma percussão suntuosa, que funciona como motor para o clima alto astral de todo o disco, só refreado na faixa final, a recriação da clássica Minha história. Além dessa e de outra pérola tirada do passado, Palavras malditas, o repertório traz sambas assinados por bambas como Ivone Lara, Délcio Carvalho e os indefectíveis Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz e Sombrinha. Mas é sendo porta-voz do talento de compositores ainda pouco conhecidos ;como a própria filha, Luana, que estreia coassinando Arrasta a sandália ; que Beth justifica seu título de ;madrinha; e torna mais do que bem-vinda a decisão de voltar a gravar um CD de inéditas.
Confira vídeo da música Andança, de Beth Carvalho: