Ricardo Daehn
postado em 30/11/2011 08:30
Da ganância pelo ouro, que acalentou a rivalidade entre homens no clássico de John Huston O tesouro de Sierra Madre (1948), aos efeitos do enriquecimento pela prospecção de petróleo em Assim caminha a humanidade (1956), a contraposição entre valores econômicos e morais das pessoas sempre foi elemento magnético para o público do cinema. Aliado a essa premissa, um colorido e entusiasmado retrato da ;Provença de Émile Zola; (como sublinha um dos personagens) deixa ainda mais exuberante o conteúdo dos blockbusters franceses Jean de Florette e A vingança de Manon, obras de meados dos anos de 1980, que chegam, pela primeira vez ao DVD, em box criado pela distribuidora Versátil. O cacife do diretor Claude Berri (popular, em épicos como Germinal, de 1993) foi tamanho que resultou na escalação dos astros Gérard Depardieu, Yves Montand e Daniel Auteuil, ;um time de futebol, generoso nos passes;, como definiu Auteuil, ao ser premiado com o César, o mais reconhecido da França.
Saídos de dois romances da série A água da colina, assinada por Marcel Pagnol, os dramas ; filmados, simultaneamente, ao longo de nove meses ; cravaram feitos: 14 milhões de espectadores foram às salas, para conferir a mais cara produção francesa (num dado superado, posteriormente, por A rainha Margot). Além das 10 indicações para prêmios César, em 1987, o filme reverteu ; inclusive desbancando candidatos britânicos ; como o melhor, na competição pelo prestigiado troféu inglês Bafta. Outra curiosidade foi a enorme mobilização da pequena cidade natal do autor dos títulos remodelados para a telalona ; a pequena Aubagne ;, um fato registrado nos extras dos DVDs.
Distante do universo frívolo, explorado em Fanny (clássico com Leslie Caron), Marcel Pagnol repete uma atmosfera de ode à natureza e de apreciação dos laços de família, como no díptico autobiográfico A glória do meu pai e O castelo de minha mãe. Dotada de elaboração visual singular, que confere textura a árvores, flores e até a tempestade de poeira, a dobradinha Jean de Florette e A vingança de Manon apresenta exemplar trabalho do diretor de fotografia Bruno Nuytten (parceiro de Jean-Luc Godard e do cultuado polonês Andrzej Zulawski).
Triunfo maior, porém, está no enredo que fundamentou o roteiro assinado pelo diretor, ao lado de Gérard Brach (O amante e Repulsa ao sexo). Morto em 1974, Pagnol apostou numa trama que foge do lugar comum de associar o fluxo de água à purificação. Explica-se: uma nascente será fonte para desavenças entre vizinhos distanciados pela elevação de colinas. Não será apenas o ato de estancar o volume de águas que aproximará César Souberyan (Montand) do destrambelhado sobrinho dele, Ugolin (Auteuil), já que um crime maior está a caminho, e envolve o vizinho ranzinza, que tem uma ;arma; como ;única amiga;.
Mal sorrateiro
A embalagem da trilha sonora apoiada pela ópera La forza del destino, de Giuseppe Verdi, pode sugerir doces reminiscências, mas o cerne do longa se desvia, para ressaltar excrescências. Um mal prospera na astúcia esparramada por César e Ugolin, incontidos quando não apenas a grama do vizinho se faz mais verde, mas os coelhos de criação parecem mais gordos, e ainda ;a fé na providência; é vista como dádiva, ao conduzir a desgraça alheia. A inveja e a cobiça transparecem, poucas vezes, com objetividade, como quando o personagem de Auteuil deixa escapar ; ;Que solo rico! Isso me mata; ;, ao deparar com a fértil qualidade das terras do vizinho, às vias de serem herdadas por Jean de Florette (ou Jean Cardoret, como é chamado o protagonista encarnado por Gérard Depardieu).
Jean ; em brilhante composição de Depardieu, num tipo corcunda, cercado de espírito criador e tranquilo, mas capaz até de desafiar a onipresença de Deus ; será uma peça prestes a ser removida, num quebra-cabeça de propósito vil que une César e Ugolin. A injeção de humanidade posta nos vilões, porém, é um dado que desestabiliza os espectadores, baratinados pelas reais intenções de cada um. No jogo, entram as ricas nuances de Daniel Auteuil e, particularmente, a maestria de Yves Montand, morto há 20 anos. Dele, há a impressionante cena de revelação bombástica (que chacoalha o público), e que, ao contrário do esperado, emociona pela carga de intimismo e pelo silêncio sofrido do imenso ator. O bastidor da morte de Simone Signoret, mulher de Montand na vida real (por mais de 30 anos), durante as filmagens, ressalta o profissionalismo do astro (italiano, apenas de nascença).
Meio enfadonho em relação ao primeiro capítulo (Jean de Florette) da saga com mais de quatro horas, A vingança de Manon pode até ter título autoexplicativo, mas vale lembrar, na trama, da importância de Manon (Ernestine Mazurowna, quando criança, e que vira Emmanuelle Béart, premiada como ;revelação feminina; no César, na etapa adulta). Pastora de cabras, a filha de Jean de Florette lida, por mais de uma década, com um forte sentimento reprimido. Convém apenas assinalar que, produtor de filmes assinados por Costa-Gavras, Eric Rohmer e Serge Gainsbourg, Claude Berri (morto em 2009), enquanto diretor, segue a primorosa escolha de Marcel Pagnol para o desfecho da trama plena de privações e tentativas de redenção.
Jean de Florette
(França/ Itália/ Suíça, 1986). De Claude Berri. Com Gérard Depardieu, Daniel Auteuil, Yves Montand e Elisabeth Depardieu. Versátil, drama, 116min. Não recomendado para menores de 14 anos. Preço sugerido: R$ 40. A vingança de Manon (Manon des sources, França, 1986). De Claude Berri. Com Yves Montand, Daniel Auteuil e Emmanuelle Béart. Versátil, drama, 110min. Não recomendado para menores de anos. Preço sugerido: R$ 40.