Severino Francisco
postado em 04/12/2011 08:00
Poucos sabem, mas o poeta Ferreira Gullar foi o primeiro diretor da Fundação Cultural de Brasília, tendo assumido o cargo em meados de 1961. Eram tempos épicos em que até afixar um prego constituía uma aventura. Ele tentou realizar a junção do que havia de mais moderno e mais popular. Promoveu salões de arte e trouxe a Escola de Samba da Mangueira. Mesmo sem visitar Brasília há muitos anos, a conexão com a cidade permanece. Gullar foi homenageado com uma edição especial do Poema sujo, pela Confraria dos Bibliófilos de Brasília. E acaba de ser distinguido com o Prêmio Jabuti de Ficção pelo livro de poesia Em alguma parte alguma. Nesta entrevista, ele fala sobre o ;Poema sujo;, poesia, espiritualidade, socialismo, capitalismo, crítica, arte e mistificação da arte.
Em que circunstância o senhor escreveu o ;Poema sujo;? O que representou esse poema para a sua vida?
Foi escrito durante os tempos em que eu estava exilado em Buenos Aires. É fruto dessa situação que se criou no Brasil no período do golpe militar de 1964. O exílio, para mim, não foi muito fácil. Depois de uma série de problemas, que me deixaram estressado, terminei no Chile, quando houve fuzilamentos e torturas. Saí de lá salvo pelo gongo. Ao chegar à Argentina, morreu Perón e começou a conspiração para derrubar Isabelita Perón. A situação se tornou tão dramática que decidi escrever o poema como se fosse a última coisa que eu faria na vida. Não tinha mais nem passaporte para sair do país. Acredito que essas circunstâncias contribuíram para a dramaticidade que acabou impregnando o texto, em decorrência dessa situação-limite.
Em que medida o ;Poema sujo; precipitou ou contribuiu no sentido de que você voltasse ao Brasil?
Acho que contribuiu de alguma maneira, pois teve uma repercussão muito grande, uma acolhida da crítica e do público que esgotou rapidamente a primeira edição. Alguns jornalistas ligados ao regime militar foram falar com o Golbery, à época chefe da Casa Civil, tentando negociar o meu retorno. O regime militar não aceitou. Mas decidi voltar assim mesmo, em grande parte devido à repercussão do poema. Naquelas condições, seria difícil dar um sumiço em mim.
Como foi a experiência do exílio? Sentia falta do quê?
No meu caso, nunca me adaptei ao exílio, não montava casa no sentido pleno da palavra. Considerava os apartamentos em que morava como acampamentos provisórios. Os móveis que eu tinha eram improvisados. Sempre pensava: ;Estou acampado e logo vou- me embora;.
O senhor ainda é um filho do grande ciclo do modernismo brasileiro na poesia. Como avalia a produção atual de poesia?
Não gostaria de citar nomes, pois sempre que cito me esqueço. Mas, depois da minha geração, surgiram poetas que marcaram a sua posição e continuam produzindo com qualidade.
Algumas pessoas consideram que, depois de ser um líder da esquerda durante a década de 1960, o senhor se tornou conservador e até mesmo de direita. Como percebe essa imagem que criam de você?
Quem diz isso é o cara que ainda está pensando em termos de direita e esquerda. Acredita em uma coisa que acabou, o socialismo marxista, que, de fato, deu uma grande contribuição à mudança do mundo, realizou a defesa dos trabalhadores, ajudou a mudar a relação capital e trabalho. Graças a essa luta do socialismo, os trabalhadores conquistaram muitos direitos. Mas a visão da utopia socialista foi superada. Quem me chama de conservador não tem coragem de romper com os seus enganos.
No que o senhor acredita, hoje, em termos políticos?
Sou a favor de uma sociedade justa, sou a favor que a luta continue. O lema que está valendo é: ;Internautas do mundo inteiro, uni-vos;. A juventude está nas ruas criticando o capitalismo e exigindo a mudança dele, porque é um regime injusto, que cria desigualdades. Mais do que nunca, as pessoas estão percebendo esta situação. E, por isso, ele vai mudar.
O senhor já deixou claro várias vezes que não é religioso. Mas é possível afirmar que há, nos seus últimos livros de poesia, uma busca da espiritualidade?
Sei que as pessoas estão percebendo que alguma coisa mudou. Mas não se trata disso. Não tenho religião, sou agnóstico, não vejo possibilidade de acreditar em uma força ou em um ser superior. Pode ser uma deficiência minha. Considero que a vida é absurda. Mas, apesar disso, reconheço que a religião é uma coisa muito importante para as pessoas. Foi criada pelo ser humano por uma necessidade fundamental. O ser humano precisa responder a perguntas que não têm resposta. Depois de séculos de desenvolvimento do materialismo, a religião continua com seus seguidores. O que acontece, no meu ponto de vista, é que começo a indagar a falta de sentido, de não poder explicar o mundo. Não aceito a explicação religiosa nem a materialista. Acho o mundo incompreensível e, evidentemente, questiono o materialismo.
O senhor foi o primeiro diretor da Fundação Cultural de Brasília. Como foi a passagem pela cidade?
Morei em Brasília no tempo em que a cidade não tinha nem um ano de idade. Eu programei o primeiro aniversário de Brasília. Fui eu que levei a primeira escola de samba ao Planalto. Convidei o pessoal da Mangueira.
Considera que deixou algum legado em sua passagem por Brasília?
Se houve algum legado, foi o de ter levado o samba para Brasília. Sou um dos responsáveis. Muitos funcionários do Congresso me telefonaram e diziam: ;Eu quero desfilar;.
Como vê Brasília hoje?
Acho que Brasília tem alguma coisa de positivo no investimento que atraiu para o Centro-Oeste. Mas ao mesmo é um peso enorme na economia do país e virou um lugar de privilégios. É uma cidade que pouco produz e gasta rios de dinheiro.
Mas Brasília não proporcionou também oportunidades para muita
gente que estava alijada e não levou o desenvolvimento para o interior do Brasil?
Isso é o lado positivo. Ao levar a capital para o interior, ajudou o crescimento de outras regiões, que não ficou mais só no Rio e em São Paulo. Mas não sei se isso compensa os custos. Agora, está feita, a cidade cresceu e, ainda bem, violou o Plano Piloto. Se Brasília fosse obedecer o Plano Piloto do Lucio Costa, seria um desastre. Era algo muito racional, que engessava tudo. Quando cheguei lá, a cidade estava incompleta, eu queria comprar um pão à noite e não podia. Aqui (no Rio), desço e compro o que quiser. Acabei de comprar um par de sapatos.
No entanto, o planejamento não é algo importante?
É preciso planejar a vida. Mas se você planejar tudo, não vive. Porque o excesso de planejamento inibe a espontaneidade na vida. A vida é mais rica do que qualquer planejamento. É tecida de acasos e de probabilidades, escapa a todo o controle racional. Ela é feita de acontecimentos e situações imprevisíveis.
Que avaliação faz da situação atual da crítica de arte no Brasil?
Se não existe mais arte, como existiria crítica?
A arte contemporânea não é arte. Costumo dizer que obras de arte, seja um poema, uma escultura ou uma pintura, não existiam, mas à medida que o artista vai pintando, se envolvendo com fatores casuais, imprevisíveis, daqui a pouco eles se tornam necessários. O artista dá a primeira pincelada sem saber direito para que rumo irá, mas entra em um jogo de acaso e necessidade. Foi assim que surgiram o quadro da noite estrelada de Van Gogh ou os poemas de Carlos Drummond. Agora, se boto seis casais nus, mas poderiam ser sete, no Moma (Museu de Arte Moderna de Nova York), não acontece nada. É um vale-tudo. Outro suposto artista colocou 20 ovos fritos na galeria. Isso é o contrário da arte. Uma arte que não tem isso não é arte.
Quem sustenta esse estado de coisas?
As instituições, os museus e as bienais. A arte de vanguarda sempre foi anti-institucional, mas a arte contemporânea depende e só acontece dentro das instituições. O urinol de Marcel Duchamp só é arte no museu; na loja, não é. A minha poesia mudou e continua mudando até hoje. Mas você pegar 20 lençóis, mandar para os leitos dos hospitais e depois expor é uma mistificação. As instituições, a Bienal e o Moma expõem tudo isso porque não querem ser retrógados. Todo mundo quer ser jovem e moderno. A Bienal de São Paulo recebeu uma obra com uma porta e os dizeres: ;Aqui você entra de graça;. Aí, eles colocaram no fundo da galeria e só era aberta para visitação das cinco às seis da tarde, com um policial vigiando.
Mas, para além das mistificações, não existem experiências interessantes na arte contemporânea?
Existem coisas isoladas. Aquela sala vermelha que o Cildo Meirelles concebeu é realmente criativa. No entanto, a maioria é mistificação. Pegaram um cachorro e deixaram morrer de fome e sede em uma galeria para fazer uma obra supostamente perecível. A Mona Lisa foi encontrada dentro de um baú de roupas sujas e continuou sendo a Mona Lisa. Onde estiver, permanecerá uma obra de arte. Mas e aqueles seis casais que posaram nus no Moma? Se saírem na rua, as pessoas vão é passar a mão na bunda deles.