postado em 04/12/2011 08:00
É uma cena muito simples: na cozinha de casa, um homem toma o café da manhã enquanto fala ao celular. Uma câmera digital o encara ; mas ele não desvia a atenção. A imagem, sem gracejo algum, deixa a impressão de ter sido roubada de um vídeo doméstico. Mas é nas conversas telefônicas que o cotidiano começa a se aproximar de uma obra estranha de ficção. O espectador logo descobre que aquele ;ator; desgrenhado, sonolento, está detido no próprio apartamento, condenado a seis anos de prisão pelo governo do Irã. E que ele é o cineasta iraniano Jafar Panahi, vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza, por O círculo (2000), e da Câmera de Ouro em Cannes, por O balão branco (2005). Eis a trama, e a tragédia, de Isto não é um filme, um dos longas mais importantes de 2011.
O documentário clandestino, dirigido pelo próprio Panahi com Mojtaba Mirtahmasb, já começa a provocar espanto e admiração no Brasil. A reação é inevitável. Na 35; Mostra de São Paulo, encerrada no início de novembro, lotou sessões e se tornou um dos prediletos dos cinéfilos. Na 4; edição do Festival Internacional de Cinema de Paraty, que seguiu até 15 do mês passado, foi uma das atrações principais, e o momento mais esperado de uma retrospectiva da carreira de Panahi, 51 anos. Talvez seja a melhor obra do cineasta ; sem dúvida alguma, é a mais corajosa. No Festival de Cannes deste ano, em que foi exibido em sessão especial, desembarcou num pen drive dentro de um bolo camuflado.
Desde dezembro de 2010, o diretor está proibido de fazer filmes, escrever roteiros, falar à imprensa e viajar ao exterior. A duração da punição, confirmada em outubro, é de 20 anos. Diante da câmera do amigo Mirtahmasb, o diretor trata a restrição com ironia ; humor que mal disfarça a fúria do artista. ;Não posso filmar, mas ninguém me proibiu de atuar. Neste filme, sou apenas um ator;, comenta, enquanto caminha de um cômodo a outro do apartamento. Em seguida, como quem arrisca um improviso, ele faz a leitura de um roteiro que foi vetado pelo governo de Mahmoud Ahmadinejad. As críticas ao atual presidente do Irã renderam a Panahi uma acusação por ;ação e propaganda contra a República Islâmica;. Em março de 2011, foi detido por 88 dias. Fez greve de fome e recebeu o apoio de cineastas como Steven Spielberg e Francis Ford Coppola. Pouco depois, já em prisão domiciliar, resolveu se manifestar. E fez um filme. Melhor: um ;não filme;.
Manifesto
Ao Festival de Cannes, em que a sessão de Isto não é um filme foi acompanhada pela esposa e pela filha do diretor, enviou uma mensagem de resistência. ;A essência reveladora da arte ajuda o artista a vencer os problemas, mas também a transformar qualquer limitação em tema de trabalho artístico;, afirmou. A comunidade internacional protestou, sem efeito. Mas, na arte, seria possível negociar limitações políticas? Daí que, em certa altura do documentário, Panahi desiste de encenar o filme que não teve permissão para fazer e, inconformado, desabafa. ;Contar um filme não é fazer um filme;, reclama. Depois, liga a tevê para comentar cenas de dois longas que dirigiu, O espelho (1997) e Ouro carmim (2003). No entanto, ainda não parece satisfeito.
A aparência do registro é caseira, mas as sutilezas da narrativa ; e a força do comentário social ; acenam para as artimanhas mais ferozes da trajetória de Panahi. Faz diferença, por exemplo, a escolha do dia em que o longa é filmado: quando estouram, nas ruas da cidade, os fogos de artifício de um protesto popular banida pelo governo. As manifestações acabam entrando pelas fissuras das paredes, dos planos. Quando finalmente decide descer de elevador e encontrar a ;cena; exterior, Panahi encerra o filme com uma imagem literalmente incendiária. Com lançamento garantido nos Estados Unidos, Isto não é um filme está livre: e não será tratado, é claro, apenas como mais um filme.
ISTO NÃO É UM FILME
(In film nist, 75min, documentário, Irã). De Jafar Panahi e Mojtaba Mirtahmasb.