Diversão e Arte

Livro registra cartas entre Fernando Sabino e Clarice Lispector

Cartas perto do coração registra a amizade entre os dois grandes escritores

Severino Francisco
postado em 10/12/2011 08:00 / atualizado em 19/10/2020 17:27

Clarice Lispector escrevia à flor da pele cartas para Fernando Sabino
O primeiro contato de Fernando Sabino com Clarice Lispector ocorreu no ano de 1944. Ele recebeu o primeiro livro dela, Perto do coração selvagem, com uma dedicatória da autora, ficou entusiasmado e publicou uma resenha. Sabino tinha 20 anos de idade, morava em Belo Horizonte e não sabia que Clarice era, pessoalmente, uma deusa de olhos felinos. Estávamos em plena Segunda Guerra Mundial, Clarice morava em Nápoles e, quando voltou, foi apresentada por Rubem Braga a Fernando Sabino e logo se estabeleceu uma amizade intensa que não seria quebrada nem pela distância: “Fiquei deslumbrado por ela”, confidenciou Sabino. O livro Cartas perto do coração, que está sendo relançado, registra a correspondência entre Fernando Sabino e Clarice Lispector, de 1946 a 1969. As cartas dele foram enviadas do Rio de Janeiro e de Nova York; as dela de Berna, na Suíça, e Washington, nos EUA, onde morou acompanhando o marido diplomata, Maury Gurgel Valente.

Nos tempos em que se conheceram, Sabino tinha porte atlético, estampa de galã, era campeão de natação, vinha de uma família pobre e havia se casado com Helena Valadares, filha do governador de Minas Gerais àépoca, Benedito Valadares. Recebeu de presente de casamento um cartório, o que lhe garantiu uma sobrevivência digna durante boa parte de sua vida. Ele havia publicado em 1941, aos 17 anos, o primeiro livro, a coletânea de contos Os grilos não cantam mais. Clarice estreou em 1943, aos 23 anos, com Perto do coração selvagem, que mereceu generosos elogios de Antonio Candido, Oswald de Andrade e Álvaro Lins, entre outros. Era belíssima, de olhos amendoados e verdes, silenciosa e enigmática.

Fernando Sabino
Em princípio, Berna seria o lugar ideal para abrigar uma escritora com o perfil de Clarice, pois era tranquila, silenciosa, com os chocolates e os relógios marcando uma vida organizada nos mínimos detalhes. No entanto, como lembra Benjamin Moser, autor da biografia Clarice, Nietzsche e Nijinsk ficaram loucos por lá. Clarice sentiu falta da bagunça e da efervescência do Rio de Janeiro: “Berna é linda e calma, a vida cara e gente feia; com a falta de carne, com o peixe, queijo, leite, gente neutra, termino mesmo dando um grito. Falta demônio na cidade”. “Não trabalho mais, Fernando. Passo os dias procurando enganar a minha angústia e procurando não fazer honrar a mim mesma”. Em outro trecho, ela escreve: “A solidão de que sempre precisei me é, ao mesmo tempo, insuportável.”

Aflição e silêncio
No entanto, um dos motivos da aflição de Clarice era o silêncio em torno do seu segundo romance, O lustre, só mereceu referências elogiosas de Sérgio Miliet e Oswald de Andrade, que o qualificou de “aterrorizante”. Clarice encontra em Fernando Sabino um amigo sempre solidário, afetuoso e pragmático: “Estão exagerando no silêncio em torno do seu livro”. As cartas estabelecem um diálogo livre, enveredando pelos mais inusitados temas, numa conversa prá lá de Marrakeshi.

Clarice fala, por exemplo, de sua visita às pirâmides do Cairo, no Egito, reclamando das sensações pré-moldadas de turista: “O problema é sentir alguma coisa que não esteja prevista em um guia”, escreve Clarice. Mais tarde, a escritora evocaria a experiência em uma crônica: “Vi a esfinge. Não a decifrei. Mas ela também não me decifrou. Encaramo-nos de igual para igual. Ela me aceitou e eu a aceitei. Cada um com seu mistério”.

CARTAS PERTO  DO CORAÇÃO<br>  De Fernando Sabino  e Clarice Lispector.  Record, 206 páginas. R$ 34
A mudança para Washington foi positiva para Clarice, pois a cidade oferecia opções culturais e contava com uma comunidade significativa de brasileiros. Apesar disso, ela fazia uma observação que caberia quase sem retoques para Berna: “É bonita segundo as várias leis da beleza que não são as minhas. Falta bagunça aqui, e não compreendo cidade sem esta certa confusão. Mas enfim, a cidade não é minha”.

Essa produção tão errática da correspondência revela, no entanto, uma linha de evolução. Em um primeiro momento, dominam inquietações e angústias vagas. Contudo, no decorrer da leitura, é possível observar a preocupação se deslocando para as questões mais concretas da produção das obras literárias de Clarice e Fernando. Como se vê, as cartas revelam uma intensa amizade fundada na palavra.

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