Diversão e Arte

Em entrevista ao Correio, o sambista Roque Ferreira fala sobre sua carreira

Com letras místicas e batuque de roda, Roque Ferreira destaca-se nas vozes de intérpretes do quilate de Maria Bethânia, Roberta Sá, Zeca Pagodinho e Mariene de Castro

Irlam Rocha Lima
postado em 14/12/2011 09:34
Com letras místicas e batuque de roda, Roque Ferreira destaca-se nas vozes de intérpretes do quilate de Maria Bethânia, Roberta Sá, Zeca Pagodinho e Mariene de Castro

De tanto compor músicas em que predominam a abordagem de elementos e ícones da cultura afro-baiana, Roque Ferreira chegou a ser confundido com um pai de santo. Celebrado autor de sambas de roda (gravados por estrelas da MPB, como Maria Bethânia, Zeca Pagodinho e Martinho da Vila, e por intérpretes da nova geração, entre as quais Roberta Sá, Mariene de Castro e Fabiana Cozza), esse artista nascido em Nazaré das Farinhas ; cidade do Recôncavo da Bahia ; não se deixa levar pela elogiosa avaliação de sua obra.

Aos 65 anos, modesto, Roque afirma convicto: ;A linguagem que utilizo em minha arte tem por base a simplicidade. Essa música tem muito a ver com aquilo que ouvi da tradição. É coisa do inconsciente coletivo, já que não vivi isto;. O compositor lembra que aprendeu muito ouvindo a avó, já em Salvador, para onde se mudou ainda criança.

Embora tenha sido cantado por Clara Nunes, João Nogueira, Roberto Ribeiro e Beth Carvalho, a partir da década de 1980, Roque só veio a se tornar conhecido pelo grande público em 1995, quando Zeca Pagodinho gravou Samba pras moças, no primeiro disco do cantor para a PolyGram (atual Universal Music). Atualmente, seus sambas estão sempre presentes no repertório de Maria Bethânia. Em Encanteria, álbum recente da cantora, pela Biscoito Fino, há o registro de quatro deles: Santa Bárbara, Feita na Bahia, Coroa do mar e Minha rede.

A jovem sambista Roberta Sá fez mais. Acompanhada pelo Trio Madeira Brasil ; os violonistas Marcello Gonçalves, Zé Paulo Becker e Ronaldo do Bandolim ;, ela gravou um disco inteiramente dedicado à obra do compositor, o elogiado Quando o canto é reza, que saiu em 2010 pela Universal Music. Outra que tem reverenciado Roque é a baiana Mariene de Castro. Ele está presente no Abre caminho e no Santo de Casa Ao Vivo, CDs lançados pela cantora em 2004 e 2011, respectivamente.

Compositor que faz parte de um núcleo de sambistas que se destacam da Bahia para o mundo, entre eles Riachão, Nelson Rufino, Edil Pacheco, Ederaldo Gentil e Walmir Lima, Roque Ferreira vê o samba numa situação de desvantagem em sua terra. ;A Bahia é dominada pela axé music. Ao contrário do Rio de Janeiro, que possui vários redutos de samba, em Salvador não há nenhuma casa destinada ao gênero;, critica. Roque esteve em Brasília recentemente para show no Balaio Café, na 201 Norte. Antes da apresentação, conversou com o Correio.

A primeira música
Com 11 anos, fiz o primeiro samba. Mas a primeira música minha que ouvi no rádio foi no final da década de 1960 e eu devia ter 20, 21 anos. Foi gravado por Clara Nunes e se chamava Apenas um adeus. Mais tarde passei a fazer sambas com temáticas afro. Depois, Baden Powell e Vinicius de Moraes surgiram com um trabalho mais sofisticado, mas o meu era simples. MPB é feita por branco e rico. O samba é feito por negro e pobre. Essa é a verdade.

Bahia é madrasta
Profissionalmente, comecei com 25, 30 anos. Fazia samba de roda em Salvador, mas tinha vergonha de mostrar minhas músicas porque achava que não tinha qualidade para ir para o rádio ou alguma coisa parecida. Naquele tempo, não tinha jabá. O apresentador preparava o programa com as músicas que ele achava convenienteS. Nas estantes das lojas, existiam LPs de MPB de um lado e, do outro, samba. Mas o samba não é MPB? MPB não é Música Popular Brasileira? Isso é uma coisa que sempre me revoltou. Certa vez, em uma entrevista, uma repórter me perguntou se o samba tinha nascido na Bahia ou no Rio de Janeiro. E respondi: se a Bahia é mãe do samba, é uma péssima mãe. Porque não há uma casa de samba em todo o estado. No Recôncavo, você encontra grupos de samba de roda com 50 componentes, que só se apresentam no meio da rua. Enquanto no Rio de Janeiro, só na Lapa, tem mais de 10 casas de samba. O samba pra mim é uma coisa sagrada.

Livros de sebo
Senti a necessidade desse trabalho, comecei a pesquisar e o meu samba ganhou essa conotação. Minhas fontes de pesquisa eram os livros de sebo. Pagava fortunas por um livro velho que a maioria das pessoas não dava o menor valor. Tenho ainda alguns, mas me desgostei com a música e abandonei isso. Um dia, chateado, vendi vários por uma miséria e perdi meus livros. Mas ficaram alguns, como uma edição de Artur Ramos de 1947, da data que eu nasci. É uma enciclopédia. Ele e Nina Rodrigues eram os caras que mais conheciam.

Majestade Caymmi
Faço um samba que é extremamente popular. Apesar não ser popularesco. É um samba EM que busco a simplicidade, mas quem descobriu a simplicidade foi Caymmi. Espelhei-me muito nele. É na simplicidade que está o mistério. Caymmi é um deus, igual a ele, ninguém. Ele é um compositor fantástico. Fazia coisas belíssimas.

A lady do Recôncavo
Conheci ela pelo J. Veloso, marido dela na época. Um dia, os dois foram na minha casa e ela começou a cantar MPB. Daí eu falei: ;Menina, você uma mulata bonita desse jeito, cantando essas coisas... Por que você não canta samba? Você cantando MPB será mais uma. Vai cantar uma, duas, três vezes nesses barzinhos da madrugada e acabou;. Ela pediu que eu fizesse uns sambas e fiz Quebradeira de coco, que passou a cantar nos shows. Daqui a pouco, ela conseguiu fazer um disco com quatro músicas minhas. Quando dei fé, Mariene já era lady. Já está no primeiro time: acabou de assinar contrato com a Universal.

Compadre Zeca
O primeiro samba de roda meu que realmente ganhou dimensão foi o Samba pras moças, com o Zeca Pagodinho. E essa música também foi importante pro Zeca porque ele tinha saído da gravadora e feito o contrato de apenas um ano com a Universal. Nenhuma gravadora faz contrato de um ano com um cantor que ela espere que faça sucesso. Escrevi a música pensando na Alcione. Mandei para o produtor dela, o Jorge Cardoso, e ele não me respondeu. Insisti, liguei pra ele, mas ela não gravaria. Então, botei a fita na gaveta e ela ficou lá por dois anos. Um dia, o produtor Rildo Hora me ligou perguntando se eu não tinha um samba de roda. Eu disse que tinha Samba pras moças. No mesmo dia da ligação, mandei uma cópia da fita com a letra. Dois dias depois, o Rildo me ligou fazendo a maior festa e dizendo que Zeca tinha gostado da música. Zeca colocou ela como música de trabalho e estourou. Ele estava vendendo cinco mil, oito mil discos, e passou a vender 400 mil. Daí pra frente foi só sucesso.

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