Nahima Maciel
postado em 22/12/2011 07:10
Bernardo Cid (1925- 1982) não se enquadrava com facilidade. Um crítico de São Paulo até tentou encaixar a obra do artista no movimento da nova figuração capitaneado por Wesley Duke Lee, mas era difícil cercá-lo de conceitos e definições muito precisas. O curador Sergio Pizoli compreendeu essa complexidade desde a primeira vez em que colocou os olhos sobre uma pintura escura e pesada, povoada por figuras humanas um tanto desconjuntadas. Quando olha a reunião de obras de Fazer arte ; A ordem oculta de Bernardo Cid, exposição em cartaz na Caixa Cultural, Pizoli compreende melhor a sensação: ;São pinturas que beiram o preto, o marrom. As figuras têm uma formação de desintegração, ele vai fundo nessa coisa da fisicalidade, da pele, do músculo, das veias. Quando você olha, é de uma delicadeza pictórica, tem uma sobreposição de cores, uma velatura como se fosse aquarela;.De fato, a manipulação das cores na obra de Bernardo Cid beira o sombrio sem, no entanto, descartar um clima etéreo. Suas figuras pairam em coloridos translúcidos. A transparência funciona como recurso para expor os contrastes e as delicadezas buscados pelo pintor. Combinar esses dois mundos funcionava como desafio, mas também como reflexo da própria história do artista.
Cid nunca seguiu estudos formais em artes visuais. A formação em engenharia elétrica diz muito sobre os caminhos pictóricos e formais do artista paulistano. ;Era uma pessoa extremamente meticulosa, e isso vem dessa coisa de ser engenheiro eletrônico, aquela coisa de solda, fiozinhos, pontinhos. Ele era bastante preciosista;, conta Pizoli. Obras como Integrações, de 1967, e Reflexões, da década de 1970, vêm carregadas de uma riqueza de detalhes que faria inveja a Hieronimus Bosch e seu Jardim das delícias.
A particularidade da obra do pintor, no entanto, está na diversidade de linguagens pelas quais transitou durante o amadurecimento da obra. ;Você reconhece o Cid como um artista único. Ele tem um trabalho muito diferenciado de toda a produção dos anos 1960 e 1970, quando tinha o realismo mágico. Eles conviveram, trocaram influências, mas a exposição tenta mostrar como o artista foi chegando na pintura dele.;
Desenho com unhas
Os grafismos marcam as primeiras obras de Cid. Por vezes excessivos, esses traços acabam depurados ao longo do tempo. Uma aparência aquarelada também permeia especialmente as pinturas. Minucioso, o artista chegou a desenhar com as unhas: riscava o papel para depois cobrir os traços com grafite. Às vezes, interessava-se pelo universo tridimensional e em um desses desvios ganhou o concurso para desenhar a estatueta do Prêmio Jabuti. No casco do animal esculpido em bronze, Cid imprimiu letras para lembrar a importância da escrita e da leitura no percurso da humanidade. As investidas na escultura eram ocasionais, e a exposição da Caixa se concentra em desenhos, pinturas e gravuras, especialmente as litografias concebidas quando o artista estava doente e desenganado.
Pizoli escolheu montar a exposição de maneira a evidenciar a trajetória e o processo criativo do artista. Colocar desenhos, pinturas e gravuras lado a lado tem função didática e serve como prova da coerência visual e conceitual de Cid. A repetição de figuras, uma certa tendência arquitetônica na composição e a translucidez marcam todas as fases. Mais abstrato no início da década de 1960, figurativo e com uma postura mais econômica em relação aos recursos gráficos na década de 1970, o artista chegou a investir em uma fase de trabalhos políticos, engajados contra a ditadura, mas sem abrir mão da identidade pictórica que o tornava facilmente reconhecível no meio artístico da época. A aproximação com os poetas concretos e, em particular, com Pedro Xisto levou Cid a incorporar o texto às obras.
Durante muito tempo, o artista passou a escrever atrás das pinturas e o curador levou algumas citações para as paredes da galeria. O livre trânsito pelas linguagens e movimentos era uma das marcas da personalidade do pintor e o principal motivo de Pizoli evitar qualquer tipo de classificação. ;O desenho dele é muito especial, particular, não consigo rotular. Ele tem uma participação surrealista? Sim. Tem essas coisas do realismo mágico? Sim. Tem figuras especiais pintadas? Ok. Mas não se enquadra.;
A primeira exposição
A Exposição nacional o foi primeiro grande evento do Rio de Janeiro. Guardadas às proporções, foi mais ou menos como preparar a cidade para receber as Olimpíadas ou a Copa do Mundo. Na época, a capital fluminense contava com 800 mil habitantes. A exposição incrementou o volume de pessoas a circularem pelas avenidas cariocas e trouxe mais 1 milhão de pessoas.
Organizada pelo então prefeito, Pereira Passos com a intenção de exibir as reformas realizadas na cidade, a Exposição nacional aconteceu em mais de 30 pavilhões nos quais os estados brasileiros trataram de apresentar suas culturas e histórias. É o contexto e o resultado do evento que a mostra 1908 ; Um Brasil em exposição, sobre a Exposição nacional tenta recuperar. ;Queremos repensar esse momento de grande globalização do Brasil. O início do século 20 foi de internacionalização dos aspectos econômicos e culturais do país, um pouco como está acontecendo hoje;, repara Margareth da Silva Pereira, curadora da mostra.
Para conseguir reunir as fotografias e os desenhos apresentados na galeria principal da Caixa Cultural, ela recorreu aos arquivos do Museu Histórico Nacional, Biblioteca Nacional, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e Museu da República, todos no Rio de Janeiro. ;A exposição deixou vestígios mais no plano cultural e intelectual;, explica a curadora. ;Foi um grande evento e teve um grande impacto no desenvolvimento da cidade.; Mostras do gênero viraram moda na época e serviam como cartão de visita da prosperidade do país em tempos de industrialização e crescimento.
FAZER ARTE ; A ORDEM OCULTA DE BERNARDO CID
1908 ; UM BRASIL EM EXPOSIÇÃO
Visitação até 26 de janeiro. De terça a domingo, das 9h às 21h, nas galerias Piccola I e II da Caixa Cultural (SBS, Q. 4 Lts. 3 e 4, Ed. Matriz da Caixa).