postado em 08/01/2012 08:06
Desde o início de qualquer civilização de que se tem notícia, os homens se reuniam para representar e ver teatro, embora o conceito não fosse conhecido dessa forma. O formato se consolidou na Grécia Antiga e ganhou vertentes e desdobramentos ao longo dos séculos. Não é de hoje que seu princípio de representar histórias, eternizando arquétipos e dramas milenares, chegou ao cinema. Nem o intercâmbio entre narrativas que pulam dos palcos para as telas, e vice-versa, é uma novidade. Mas, agora, esse casamento entre teatro e cinema está se consolidando em Brasília. Somente no ano passado, dois textos dramatúrgicos criados na cidade ganharam versão cinematográfica.Um deles é Cru, peça do dramaturgo Alexandre Ribondi, que conquistou a tela grande pela câmera do cineasta Jimi Figueiredo, com Chico Sant;anna, Sérgio Sartório, André Reis e Rosanna Viegas, entre outros, no elenco. Ribondi convidou-o para uma sessão, ele topou e decidiu encarar a empreitada de adaptar a linguagem e filmar o enredo, que conta a história da chegada de um homem a um açougue de uma cidade do interior, à procura de um matador de aluguel. No decorrer da trama, descobre-se que os três homens têm mais em comum do que se imagina.
;Precisei fazer mudanças, porque o cinema é mais lento e introspectivo, exige o tempo da imagem. A peça tem uma verborragia e uma dinâmica que são próprias do teatro. Há relatos dos personagens, por exemplo, que transformei em cenas;, descreve ele.
Esse desdobramento da história exigiu que novos cenários fossem criados. Na dramaturgia de Ribondi, toda a ação se passa dentro do açougue. Para o filme, além da casa de carnes, um quarto de hotel foi recriado. A locação externa é uma pedreira em Pirenópolis (GO). O dramaturgo participou da transformação da dramaturgia em roteiro e a boa relação com os atores, que já tinham trabalhado com Figueiredo em outras ocasiões, ajudou no resultado final. ;Retrabalhamos os tempos da interpretação. A peça é mais pra fora e o filme, mais pra dentro;, conta o diretor.
A produção foi exibida na última edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e faturou o prêmio Câmara Legislativa de melhor longa-metragem. Também foi apresentado em seis sessões da Mostra Novos Rumos, durante o Festival do Rio 2011. Agora, Jimi Figueiredo está inscrevendo o filme em novas mostras de cinema país afora. ;Adoro teatro e sempre que vou faço esse exercício de pensar em como seria a adaptação, o que precisaria mudar;, conta ele.
Festivais
O dramaturgo, ator e diretor Rodrigo Fischer também teve uma obra sua transposta para a tela grande. A montagem Eutro, fruto de sua dissertação de mestrado, relata o encontro entre quatro amigos (dois homens e duas mulheres) em uma noite intercalada por surpresas. No cinema, ganhou o título No lugar errado, com o mesmo elenco, e sob a condução de quatro integrantes do Alumbramento, coletivo de cinema surgido no Ceará, que coleciona prêmios e causa frisson no mercado alternativo.
A produção, encenada por Fischer, Sulian Princivalli, Márcio Minervino e Michele Santini, já passou pelo festival do Rio, pela Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e foi exibido na Janela do Cinema, em Recife. ;O filme conseguiu trabalhar as relações com mais profundidade e ambiguidade;, reconhece Fischer.
A possibilidade surgiu quando Fischer e seu amigo de infância Ricardo Pretti se reuniram em uma mesa de bar. Pretti, que integra o coletivo, gostou da proposta e levou a ideia aos companheiros, que se entusiasmaram. ;Minha primeira impressão, ao ver a peça, foi a de uma porrada. Acabei sem saber como reagir. A peça mexe com os afetos, com o que é encenação e o que não é, o que diz respeito aos atores e aos personagens;, explica Pedro Diógenes, outro integrante da Alumbramento, que tem como uma de suas caraterísticas a alternância de funções dentro do set de filmagens.
;Desde que fiz a peça, vi a possibilidade de alcance no cinema. Achava que os personagens teriam mais força, já que o registro de interpretação é bem cinematográfico, mais intimista, minimalista e sutil;, destaca o autor do texto, que produziu mais um roteiro do que uma obra dramatúrgica fechada, outra proximidade com a linguagem do audiovisual.
Quando chegaram a Brasília, para a imersão de seis dias, os quatro diretores, cuja assinatura profissional é Irmãos Pretti/primos Parente, acompanharam cinco ensaios e definiram os rumos da adaptação. ;O que a gente quis, principalmente, foi elevar a dramaturgia no trabalho dos atores. Eliminamos o máximo cenário, participação externa. Até a cor do filme retiramos, para concentrar a tensão nesses elementos;, detalha Diógenes.
Para ele, a relação entre as duas linguagens é natural. ;O teatro está quase no nascer do cinema. Grandes dramaturgos, como Eisenstein, escreveram para o cinema, e vice versa;, afirma. ;Para o ator, é preciso entender o mecanismo envolvido em uma filmagem, senão fica perdido, vira marionete. Teatro e cinema se alimentam um do outro constantemente, nos sentidos estético e filosófico;, salienta Fischer, que dedica seu doutorado ao estudo da relação entre as duas artes.
Técnicas de atuação
Fundador do grupo mineiro Galpão há 29 anos, Eduardo Moreira veio a Brasília recentemente para tratar das diferenças e da complementaridade entre o que se desenrola no palco e no escrutínio do cinema. A trupe, forjada na exuberância e na teatralização dos grupos de rua, viu no cinema um contraponto saudável em suas técnicas de atuação, por reforçar uma tendência ao realismo. O grupo já foi tema de documentários como Cinema instantâneo, de Sérgio Penna, e Moscou, de Eduardo Coutinho, além de registrar participações de integrantes de seu elenco em produções como O palhaço, de Selton Mello. Coutinho retratou o processo de criação da peça Tio Vânia, de Anton Tchekhov, adaptada pelos mineiros. Já o projeto assinado por Penna é fruto de criação coletiva dos atores. ;Teatro é onde o ator se forma, é o lugar do ator. No cinema, pela técnica, o processo está mais na mão do diretor. Ao mesmo tempo, teatro é efêmero e cinema é permanência. Permite que o ator se observe e crie um parâmetro para si mesmo;, observa Moreira.
QUAIS AS MELHORES ADAPTAÇÕES TEATRAIS PARA O CINEMA?
; ;Vi uma peça na última edição do festival Cena Contemporânea, a mexicana Amarillo, e imaginei que daria um belo filme. Shakespeare é sempre genial para o cinema. Teatro do absurdo e comédias também caem bem em adaptações cinematográficas;
Jimi Figueiredo, cineasta
; ;Gosto muito de Um bonde chamado desejo, de Tennessee Williams. O pagador de promessas é outro clássico, escrito por Dias Gomes, importante tanto para o cinema quanto para o teatro;
Pedro Diógenes, cineasta
; ;O grupo que mais sabe misturar essas linguagens é o francês Théâtre du Soleil. É um teatro naturalmente cinematográfico. Eles montam peças que depois viram filmes;
Rodrigo Fischer, ator, diretor e dramaturgo
; ;Gosto das peças de Tennessee Williams, como Um bonde chamado desejo e Gata em teto de zinco quente. Os americanos desenvolveram um tipo de interpretação a partir do trabalho de Stanislavski e outros diretores russos. Alguns nomes, como Lee Strasberg, aplicaram isso no cinema de forma vigorosa;
Eduardo Moreira, ator e fundador do Grupo Galpão