Pelos 24 anos de ausência em longas-metragens, a musa do cinema brasileiro Nicole Puzzi traz em torno da imagem uma lacuna passível de se completar com impressões precipitadas. Para começar, numa longa conversa por telefone, ela deixa claro que não vive de passado. “Com Amor e revolução (novela do SBT), estou numa fase ótima, talvez das melhores de toda a carreira”, comemora. O momento de brilho, ao interpretar a perversa Feliciana (uma governanta e amante de general, que arrisca a vida, na era de chumbo), brotou de esforço pessoal.
Com a carreira abandonada em 2004, Nicole se mudou para a Itália, indo ao encontro de si mesma. Por dois anos, ela, filha de mãe italiana, integrou a equipe de uma instituição de assistência social e apostou na reciclagem, a partir de cursos no prestigiado complexo artístico da Cinecittà. De certo momento de reflexão, vivenciada uma crise (“a gente sempre tem saída”, despista ela), Nicole Puzzi tirou da manga, ainda na Itália, a antiga ideia de escrever o livro A boca de São Paulo, recém-lançado, em proposta inovadora da editora Clube de Autores.
A revisão, no papel, da carreira da atriz que foi musa do erotizado cinema de Walter Hugo Khouri e que estrelou, a partir dos 17 anos, filmes como Damas do prazer (1978) e Retrato falado de uma mulher sem pudor (1982), faz uma oportuna ponte com o presente da intérprete de 53 anos. “Não sou ex- nada: continuo sendo uma atriz de pornochanchada. Os filmes estão eternizados”, explica, ao comentar do desafio para o carnaval, a convite da escola Águia de Ouro (São Paulo). Cheios de dedos, carnavalescos a chamaram para o desfile em carro alegórico referente ao cinema brasileiro, na companhia, por exemplo, do diretor Fernando Meirelles. Sem pudores, Puzzi foi quem exigiu a faixa que ostentará na avenida: “Rainha da pornochanchada”. Caso estivesse em voga, o movimento retratado em produções estruturadas na Boca do Lixo teria em Nicole uma franca defensora. “Se me pedissem pra fazer: eu dava uma guaribada aqui, bem, e ia lá fazer!”, reforça.
Hoje em dia, moradora de condomínio no Butantã, a atriz conta que extrai calma e tranquilidade da solidão (“mas não sou solitária”, demarca) e ainda que, se não está milionária, se vê longe da pobreza. Avessa a dar detalhes sobre os próximos passos (só deixa escapar a participação num curta, em janeiro), a atriz tem na memória momentos de enorme projeção, como o de protagonizar Ariella, em 1980. A redação do livro serviu para expor o caráter (“bom”, como ela reclama) e para aparar arestas pessoais. “As pessoas não sabem do meu interior”, pontua a atriz, hoje em dia, desarmada, mas “preparada” para maiores aproximações. Foi na pele que a paranaense, pela postura “bem resolvida” (em especial, no campo da sensualidade), sentiu os efeitos de maledicências e cravou um aprendizado — “Se você não é inteligente, sucumbe ao preconceito.”
Sexo simulado
Desconhecimento de causa, por sinal, é coisa que a tira do sério. O incômodo está registrado na publicação, como explicita o trecho detido no “deslize de burguês” de “relegar a pornochanchada somente a um público inculto”. O prestígio dos “senhores de terno Armani”, que declaram a eterna admiração, é um afago costumeiro. Completamente ilógico seria especular em torno da oportunidade de “programas”, supostamente, feitos por atrizes ou tocar no quesito “arrependimento”, quando o assunto é o passado, com as fitas apoiadas na sensualidade. “Pessoas que viram os filmes da época sabem que era sexo simulado, e nunca foi explícito”, diz, antes de completar: “Gostava de fazer filmes, eu não gostava de sacanagem. Sempre fui extremamente séria no meu dia a dia: nunca usei drogas, por exemplo”. “Nunca precisei ou quis ser prostituta”, ainda dispara Puzzi, a quem ouse em estigmatizá-la.
A eterna valorização de diretores e produtores, por pesquisadores do cinema, encontra um contrapeso no livro A boca de São Paulo. “O que seria da pornochanchada, se não fossem as mulheres?”, pergunta-se a amadurecida Nicole, que, por curto período de tempo do passado, acreditou no preconceito em relação à “arte menor da pornochanchada”. “Não sou escritora.
Escrevi sobre algo que vivenciei. Ficava irritada ao ver intelectuais de faculdade que queriam tratar do tema como se fosse algo deles. O assunto é meu, não é de professor de universidade”, delimita.
Atenta e analítica, a atriz alça voos de estilo ou de impacto, na narrativa. Breve alfinetada está no trecho “a cinematografia contemporânea perdeu a criatividade do Cinema Novo, a inovação do Cinema Marginal e a singularidade escatológica das pornochanchadas”, enquanto, ao descrever a repressão ao feminismo, ela registra: “Parece-me que o medo da força da mulher fez os homens do mundo todo tentar mostrar onde, segundo eles, era o lugar delas: na cama, gemendo”.