Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Centenário de Herivelto Martins será comemorado em poucos eventos

Há exatos 100 anos nascia no distrito de Rodeio (hoje Engenheiro Paulo de Frontin), no Rio de Janeiro, Herivelto de Oliveira Martins, aquele que viria a ser um dos principais nomes da música popular brasileira. Filho de Carlota de Oliveira e do agente ferroviário Félix Bueno, Herivelto Martins tornou-se conhecido pelas lindas composições e pelo tumultuado relacionamento com Dalva de Oliveira, cantora que dividia o palco com ele no Trio de Ouro, ao lado também de Nilo Chagas.

O pai, Félix Bueno, amava o teatro. E amava tanto que conduziu o filho para a vida artística o ensinando a tocar instrumentos, a se vestir adequadamente e a se comportar no palco. O ensinamento começou cedo. Aos três anos, Félix colocava Herivelto em cima de pequeno tablado para cantar versinhos como ;Tenho 3 anos de idade/Nasci para namorar/Toda moça bonita que vejo/Me dá vontade de casar;. Já aos 9, Herivelto compôs o primeiro samba, Nunca mais. No total, foram cerca de 700 composições, entre tangos, sambas, marchas de carnaval, valsas e jongos africanos.

A infância e a juventude se dividiram entre a Barra do Piraí (RJ) e o Brás (SP), mas ele não se adaptou à vida de paulistano e, aos 18 anos, partiu rumo ao Rio. Na capital carioca, passou fome e fazia um bico de barbeiro no Morro de São Carlos nos fins de semana, para bancar o feijão à Camões (um prato de feijão preto com uma colher de arroz no meio), que era só o que ele podia pagar. E foi naquela barbearia da Zona Norte do Rio que o músico conheceu José Luís Costa, o Príncipe Pretinho (autor de Só para chatear, sucesso no carnaval de 1948). O sambista renomado o levou para um ensaio do conjunto de J.B. de Carvalho, grupo em que Herivelto conheceu Francisco Sena, seu companheiro na Dupla Preto e Branco. Depois que Sena morreu, Nilo Chagas entrou em seu lugar e, com a aparição de Dalva de Oliveira, formou-se o Trio de Ouro, que estourou no rádio.



Com Dalva de Oliveira, Herivelto Martins viveu um intenso e turbulento amor nas décadas de 1930 e 1940. O relacionamento rendeu clássicos como Tudo acabado, Errei sim, Calúnia, Palhaço e Bom dia (esta, dizem, escrita em uma tampa de uma caixa de sapatos, durante uma fase de enorme dificuldade financeira). Um dia, Herivelto mandou pelo filho Pery Ribeiro o samba-canção Fracassamos para Dalva. Ela gravou a música no seu último compacto. A canção dizia ;E quanta coisa juntos nós realizamos. Porém, agora, reconheço, fracassamos;. As brigas eram impulsionadas pela mídia da época, que se satisfazia com as composições e colocava mais lenha na fogueira da dupla de artistas.

Em 2010, a história do casal ganhou ares de ficção na minissérie Dalva e Herivelto, uma canção de amor, de autoria de Maria Adelaide Amaral, com a colaboração de Geraldo Carneiro e Letícia Mey. Em cinco capítulos, a história dirigida por Dennis Carvalho focou no drama vivido por Dalva e Herivelto e terminou com a morte da cantora, em 1972. ;O final da minissérie foi bem fiel. Minha mãe pedia para o meu pai ir ao hospital, mas ele não queria ir. Eu, que conhecia meu pai, achava que ele estava morrendo de medo de ver aquela pessoa que ele tanto amou, e ainda amava, se despedir da vida. Ele não queria ver isso;, conta Pery.

;O Herivelto era um extraordinário compositor e um extraordinário ser humano. Infelizmente, aquela história que a TV Globo contou o deixou como o vilão e ele não era nada disso;, diz o escritor Sérgio Cabral, que lembrou um episódio da vida de Herivelto que poucos conhecem. ;O Herivelto tinha um problema cardíaco sério e precisava fazer uma cirurgia e não tinha dinheiro, nem plano de saúde. O Chico Anysio soube e entregou a ele um cheque em branco assinado e disse: ;Só me diz depois quanto foi;. E ele fez a cirurgia. Depois, o Herivelto me contou essa história chorando, emocionado com esse gesto. Além de genial ator e autor, Chico Anysio é uma pessoa muito especial.;

O legado

Vítima de embolia pulmonar, Herivelto Martins partiu em fevereiro de 1992, aos 80 anos. A ausência ;física; do músico não foi superada pelo legado que ele deixou: composições inesquecíveis, regravadas nos quatros cantos do mundo. Aqui, no Brasil, Gabriel Azevedo decidiu celebrar o ídolo com o projeto Que rei sou eu? ; O centenário de Herivelto Martins. Entre os dias 1; e 3 de março, ele e o grupo Casuarina convidam Áurea Martins, Nilze Carvalho e o Moyseis Marques para cantar algumas músicas do compositor fluminense, como Praça Onze, Isaura, Ave-Maria do morro e Segredo.

;A obra do Herivelto tem muita coisa. Ele fez tangos, modas de viola, mas neste projeto priorizamos o samba. Tenho certeza que esse evento, pelo menos aqui no Rio de Janeiro, dará um ;start; nas comemorações dos 100 anos do Herivelto. Resolvemos fazer os shows com esses convidados porque é como se fosse um tributo dessa geração da Lapa para o Herivelto. Mas ainda tem muita coisa para ser feita;, diz Gabriel.


A tradicional Banda de Ipanema também homenageará Herivelto no sábado de carnaval, porém, é uma das poucas lembranças previstas para comemorar o centenário. ;Já tentamos produzir alguns shows, mas falta subsídio. Um projeto foi aprovado pela Lei Rouanet para fazer uma grande apresentação com a Orquestra Sinfônica de São Paulo e há quase dois anos buscamos patrocínio, mas não conseguimos nada ainda. Um trabalho em homenagem ao meu pai não pode ser simplesmente piano, baixo e bateria. É uma obra muito consistente, que merece cordas, violino, saxofone. E isso tem um custo. Não tenho a pretensão de fazer nada milionário, mas que fosse meio-termo, uma homenagem justa, honesta, sincera e condizente com a obra do meu pai. Acho que o grande público não está recebendo a obra do meu pai como poderia e deveria, o que é lamentável;, desabafa Pery Ribeiro.

; Samba quilométrico

Em uma noite, no Cassino da Urca (RJ), Sebastião Prata, o Grande Otelo, procurou Herivelto Martins sugerindo uma música sobre o fim da Praça Onze, reduto tradicional das folias cariocas, que iria ser destruído para dar lugar à Avenida Vargas. Otelo chegou com a letra e Herivelto não aceitou por falta de tempo e por achar a letra muito grande. Depois de muita insistência, Herivelto fez uma versão mais ;compacta; da obra, composta durante viagens de barca e apresentações em cassinos. A nova versão do samba deu certo e Praça Onze embalou o carnaval de 1942 na voz de Castro Barbosa e do Trio de Ouro.

O que eles dizem

;Grande compositor, grande artista e grande personalidade da música brasileira. Herivelto talvez tenha sido, muito antes de Vinicius (de Moraes), o primeiro ;branco de alma negra do nosso samba;. É imperdoável que a Mangueira nunca tenha homenageado ele, que deu a ela alguns dos seus mais lindos hinos. Herivelto pontificou nas duas áreas: a música do morro e a do asfalto. Que os seus 100 anos não passem em branco;

; Ruy Castro, escritor


;Sem dúvida nenhuma, o maior legado que Herivelto Martins deixou foi sua música. Ele era um cara muito abrangente: fazia sambas falando das escolas de samba, animados, românticos; Ele ficou muito famoso pela polêmica da vida pessoal com a Dalva de Oliveira, mas, independente dessas histórias todas, o que fica de mais importante são as músicas dele, que é uma obra
muito vasta;

; Gabriel Azevedo, músico

; O que ver
; DVD da minissérie Dalva & Herivelto, uma canção de amor (Globo Marcas)
; DVD Programa Ensaio ; Herivelto Martins (Biscoito Fino)

; O que ler
; Minhas duas estrelas ; Uma vida com meus pais, de Ana Duarte
e Pery Ribeiro
; Herivelto como conheci, de Cacau Hygino e Yaçanã Martins
; O melhor de Herivelto Martins, de Irmãos Vitale Editores

; O que ouvir
; Nelson Gonçalves canta Noel Rosa e Herivelto Martins (Revivendo)
; Dois gênios ; Ataulfo Alves e Herivelto Martins, vários artistas
(Warner Music)
; Que rei sou eu?, vários artistas (Atração)