Ricardo Daehn
postado em 31/01/2012 12:06
Fosse o cineasta Adirley Queirós um cara vingativo, ele estaria por cima da carne seca: como sentiu desrespeito, no tratamento reservado aos diretores, no mais recente Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, preferiu retirar o longa A cidade é uma só? da Mostra Brasília. Deu o destino as suas voltas, e, pronto: o filme, exibido na 15; Mostra de Tiradentes (Minas Gerais), levou o prêmio principal, despertando representantes da curadoria de eventos fílmicos como Cannes, Veneza e San Sebastián (Espanha).;Abriu portas que a gente ainda nem tem noção;, comemora o ;autêntico ceilandense; (nascido, na verdade, em Morro Agudo de Goiás). ;Foi um filme que explodiu na tela. A coisa mais fantástica que já vivi. Algo parecido com a repercussão do curta Rap, o canto da Ceilândia, quando parou o Cine Brasília, na época. Fui aplaudido, em Tiradentes, por 800 pessoas do festival mais crítico do país;, observa o diretor de 41 anos.
Um ponta de vaidade aflora ; ou melhor, de pertencimento, quando Adirley percebe que ;a crítica começa a falar que existe um cinema diferente em Ceilândia, em relação ao cinema de Brasília;. Explica-se: A cidade é uma só? se atém a dado verídico, de cisão, ;no filme, há a música tema que retirou Ceilândia de Brasília. Jogaram as pessoas para cá (Ceilândia), expulsaram;, como ele diz.
Alheia ao contexto socioeconômico da medida do governo, nos anos 1970, em que ;crianças foram recolhidas em escolas públicas para integrar um coral que, pelo canto, deu base para aliviar a remoção;, uma menina acalentou o sonho de projeção, por meio da música. Nancy Araújo, do grupo Natiê, era a criança que agora dá depoimento para a fita de Adirley Queirós. Num misto de ficção e realidade, entram em cena os atores Wellington Abreu (do Hierofante) e Dilmar Durães. Feito pelo rapper Marquim (do grupo Tropa de Elite), um personagem marqueteiro completa a trama de A cidade é uma só?.
;Crio aquela confusão nos espectadores sobre quem são os atores;, explica, ao falar da trama que tem de candidato a distrital passando por corretor de lotes na periferia e apropriações fictícias de documentos verdadeiros. ;Com o filme mostrado em Tiradentes, houve demanda muito grande de pessoas interessadas, lá fora. Para circular, vou ter que colocá-lo no suporte de película;, explica Queirós, em torno da produção que derivou de um projeto para a tevê (em edital que ofertou R$ 400 mil). Um ano e meio depois da fagulha inicial da fita, a perspectiva é a de que a versão abreviada seja exibida, via TV Brasil, em canal aberto, no aniversário de Brasília (em 21 de abril).
Tarantino
Atualmente, Adirley Queirós se aplica ao documentário (com pegada irreal) Branco sai, preto fica, em torno do popular baile Quarentão, uma referência da noite dos anos 1980. ;Não será tão histórico, já que vai ter até ficção científica. A gente vai apostar na estética. A história traz pessoas amputadas que fazem o percurso de futuro para o passado;, adianta. Algo de Quentin Tarantino? ;Não sei bem se é meu Tarantino. Centralizarei mais em perdas físicas, em pessoas, por exemplo, com pernas mecânicas que queiram reconstruir, buscar recuperação. Será uma metáfora de momento histórico, da amputação cultural de uma cidade. A minha geração foi amputada, em termos de valores de identidade;, pontua.
Saído de uma área rural próxima a Brazlândia, em 1977, Adirley Queirós chegou a Ceilândia, onde atua como agitador cultural, vez por outra, patrocinado pelo Fundo de Apoio à Cultura (FAC), ;um privilégio para a classe artística do DF, em termos de política pública;. Uma meta para 2012 é a oficina, com duração de quatro meses, voltada a 20 ceilandenses interessados em formatar roteiro experimental.
No plano da cena cultural local, ;um acúmulo histórico; incomoda o diretor: ;Temos a necessidade de uma sala pública de cinema, em Ceilândia. Como a gente pode se conformar com o fato de um perímetro urbano que abriga Ceilândia, Samambaia, Águas Lindas e Santo Antônio do Descoberto não ter uma sala de cinema? Até temos o espaço do Sesc, mas que não passa filme aqui ; passa uma mostra, de vez em quando;. Nos últimos cinco anos, aliás, a bandeira de um espaço para escoar a efervescência de ;atores, diretores, músicos e escritores; tem sido uma constante. ;O espaço público é intocável, e deve ser gerido pelo público;, conclui.