Diversão e Arte

Autor de livro sobre a trajetória de Charlie Chaplin fala ao Correio

José Carlos Vieira
postado em 12/02/2012 08:00
Mesmo quando estava no orfanato, quando perambulava pelas ruas tentando achar o que comer para conseguir sobreviver, mesmo nesses dias, eu pensava em mim mesmo como o maior ator do mundo;, assim se definia Charles Spencer ;Charlie; Chaplin (1889-1977), cuja arte atravessa três séculos incólume e atual. Declarações como essta, inúmeros documentos e dezenas de fotos estão no livro recém-lançado no Brasil Chaplin ; Uma biografia definitiva, do crítico e pesquisador britânico David Robinson.

Como se passasse um escâner na vida do maior ícone do cinema, o principal biógrafo de Charlie Chaplin traça em detalhes a trajetória solitária, cheia de polêmicas e de poesia do menino pobre que sempre buscava a perfeição, mesmo que ela chegasse à dor física. David Robinson, 81 anos, especialista em cinema mudo, considera Chaplin um sobrevivente: o pai alcoólatra, a mãe com graves problemas mentais e um lar desfigurado são ingredientes para uma tragédia, mas o menino franzino optou pela comédia. Nesta entrevista exclusiva ao Correio, Robinson fala de Carlitos e dos rumos do cinema atual.

Entrevista - David Robinsom

O que levou o senhor a investir em uma biografia de Chaplin?

Meu pai era um entusiasta de Charlie Chaplin. Quando eu era criança, sempre que havia um filme de Chaplin em cartaz ; novo ou velho ; meus pais me levavam. Além disso, desde cedo me interessei pela arte popular ; circo, music hall, cabaré, comédia; ou seja, qualquer tipo de expressão que alcançasse o maior número de pessoas. E a obra de Chaplin é o melhor exemplo disso. Sempre quis escrever sobre ele, mas havia tantos livros sobre o artista, parecia que tudo já havia sido dito. Porém, no fim de sua vida, encontrei com ele uma ou duas vezes, e expliquei meu desejo. Depois que ele morreu, sua viúva, Oona, disse que eu poderia ver os arquivos em Vevey (Suíça), pois ninguém naquela época tinha sido autorizado a ver. Então, finalmente, eu tinha algo novo para colocar em um livro. Foi irresistível.

O que, na sua opinião, foram as principais qualidades e defeitos de Chaplin?
Bem, para mim, ele realmente não tem defeitos. Conheço um monte de gente, particularmente os ingleses, que dizem que ele é muito sentimental. Pessoalmente, acho que é porque eles (especialmente os britânicos) são demasiadamente cínicos. E você não pode ser cínico e amar Charlie Chaplin ; as duas coisas não andam juntas. Um exemplo é o simbólico discurso feito em O grande ditador. Charlie realmente sai do personagem e fala seus próprios pensamentos apaixonados sobre o que estava errado com o mundo. Quando o filme saiu, em 1940, a esquerda política disse que o discurso era ingênuo, a direita ressaltou que era propaganda marxista perigosa. Quando assistimos ao discurso hoje, parece mais revelador do que nunca, com frases maravilhosas como ;A cobiça envenenou a alma dos homens;. Se você ver o que está acontecendo hoje, perceberá que o discurso dele está ainda atual. É grande!

Em seu livro, Hannah, mãe de Charlie Chaplin, desempenha um papel decisivo na ida do filho ao palco. Além de Hannah, que artistas que você citaria como responsável pela formação do ;Little Tramp; Chaplin?

Acho que a grande influência sobre Chaplin era o próprio Chaplin. Ele passou os primeiros 10 anos de sua vida em condições de grande pobreza nas ruas de Londres. Ele testemunhou a morte, e a loucura e o alcoolismo, sofreu com fome e a vida em orfanatos. Aos 10 anos, tinha visto a parte mais triste da vida do que a maioria das pessoas. A maioria das crianças teria desistido e morrido em tais circunstâncias. Mas Chaplin sobreviveu e, em seguida, passou a trabalhar como artista. Jogou tudo isso nos palcos com sua forma de expressão: a mímica e a comédia. E o que ele expressou foi a vida como ele sabia ; em todas as suas profundezas da comédia e da tragédia ; como sempre dizia: as duas estão muito próximas. É claro que uma parte muito importante da sua formação foi quando conviveu com o disciplinado Fred Karno e seu esquetes.

Já famoso, Chaplin teve acesso a informações sobre o cinema falado 10 anos antes dessa tecnologia dominar o mercado. Por que ele não investiu nessa nova experiência? Descaso, talvez?
Descaso não, pois ainda não era um bom negócio. Ele tinha construído sua fama com o personagem clown, que era conhecido em todo o mundo ; todo o mundo, porque a sua linguagem era universal: a mímica. Se o Little Tramp começasse a falar ; e falar em inglês ; sua plateia no mundo teria um choque. Ele também pensou: todo mundo tinha sua própria fantasia de como era a voz do Vagabundo, apenas por meio das músicas e dos efeitos sonoros, e isso foi capaz de prolongar o cinema mudo ; consequentemente, Vagabundo ; por oito anos após a chegada do som. E, quando finalmente decidiu que era hora de abandonar o Vagabundo e tentar novos temas, ele lidou com o som muito bem.

A postura política de Chaplin preocupava os grandes estúdios e até mesmo o governo dos EUA. Hoje não há artistas que enfrentam o establishment, por quê?
Chaplin, por sua natureza, fez filmes sobre os excluídos, o que era muito suspeito para a direita americana e muito atraente para a esquerda. Então, os amigos de Chaplin eram principalmente as pessoas de esquerda, o que o fez ainda mais um objeto de suspeita pela direita. Ele era particularmente detestado por J. Edgar Hoover, que gastou uma fortuna de dinheiro do FBI tentando provar que Chaplin contribuiu para causas comunistas ; o que o artista nunca fez.

Por que, na opinião do senhor, a arte de Chaplin continua atual?
Porque está sempre ligada às questões mais fundamentais do ser humano: problemas, desafios, tristezas, alegrias verdadeiras e simples. Sua arte não está presa a uma época particular (e lembre-se: ele começou a trabalhar no palco no século 19). Temas de Chaplin são fundamentais e eternos.

Cada vez mais, o poder de Hollywood ocupa espaço no cenário mundial. Isso é saudável? Os diretores europeus estão sendo seduzidos pela estética norte-americana?

É claro que isso é um desastre com o qual vivemos. Hollywood domina as bilheterias em todos os lugares. O seu poder econômico impede que outros cinemas nacionais sejam competitivos. Talentos fora de Hollywood irão ocasionalmente acontecer e até rivalizar com os filmes americanos, mas não serão suficientes para uma mudança.

Novas tecnologias, como 3D, vieram para ficar? Haverá uma transição drástica,como o fim do cinema mudo?
Bem, o 3D não é uma tecnologia tão nova. Houve ondas 3D no cinema do século passado. A maior foi em 1950, quando o cinemascope e o 3D foram trazidos para combater a ameaça da televisão. Mas, na verdade, o 3D sempre provou ser uma forma temporária, e depois de alguns meses ou um ano ou dois se desvanece, afastado-se até a próxima vez. O problema é que o 3D é uma tecnologia muito antiga, e ainda cara, além da questão de sempre ter de distribuir óculos para o público. (Havia uma vez, temporariamente, um sistema russo que não usava óculos, mas não funcionou muito bem). Eu diria que em dois anos as pessoas terão esquecido o 3D novamente. . . até a próxima vez.

De David Robinson. Editora Novo Século. Tradução de Andrea Mariz. Número de páginas 792.
Preço: R$ 79,90.


Trechos do livro "Chaplin - Uma biografia definitiva", de David Robinson

"... Em geral os arquivos do FBI revelam muito mais sobre os métodos do FBI do que da vida de Chaplin. O que é alarmante não é qualquer habilidade investigativa ou descaminho nos métodos da agência, mas o grau de imundície e estupidez que m uitos dos relatórios revelam. Um tempo excessivo parace ter sido devotado a processar boatos, cartas anônimas acusadoras e correspondências excêntricas não solicityadas, juntamente com os ataques maliciosos de Hedda Hopper, Ed Sullivan e outros colunistas de fofocas. (...)"

"... Quando Hannah saiu do palco, o gerente, que tinha visto o pequeno Charlie dar cambalhotas para entreter os amigo de Hannah nos bastidores, arrastou-o a uma apresentação improvisada para substituir a mãe. Impertubável, a criaqnça cantou a música, "E dunno where ;e are", (...) A performance foi um grande sucesso e, para deleite de Charlie, o público começou a atirar dinheiro em direção do palco. Seu senso para os negócios nasceu nessa noite. (...) Na autobiografia, ele observa que essa noite marcou sua primeira aparição no palco e a última da mãe (...)"

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