A programação de hoje, que abre a mostra Douglas Sirk: O príncipe do melodrama (de graça, no Centro Cultural Banco do Brasil) condensa a versatilidade na trajetória do cineasta alemão, filho de dinamarqueses, que, em Hollywood, buscou o exílio, fugindo dos nazistas. Num extremo, Onde canta o rouxinol (1936), feito na Alemanha, é o conto de fadas que mostra uma cantora inserida num reino de sonhos, mas detida em reencontrar o pai sumido; já Sangue rebelde (1955), com o eterno colaborador Rock Hudson, envereda para a ação de agentes disfarçados, na luta em favor da autonomia da Irlanda (contra a Inglaterra). A dobradinha faz parte do gênero que o consagrou: o melodrama.
Atento à interferência do melodrama na atualidade, o curador da mostra Pedro Maciel Guimarães expandirá o debate em torno de Sirk em 2 de junho, quando apresentará uma palestra motivada pelas quatro semanas de exibição de quase 30 filmes do diretor. "Falarei de como a tevê e o cinema contemporâneos se apoiam nos dramas românticos clássicos (de Sirk, Vincent Minnellli e Michael Curtiz), tanto formal como tematicamente. As novelas brasileiras atuais bebem na fonte dos melodramas clássicos e os grandes autores de folhetins televisivos, Silvio de Abreu, Gilberto Braga e João Emanuel Carneiro, são fanáticos por melodramas e transportam histórias do cinema para a telinha", adianta.
Morto há 25 anos, Claus Detlev Sierk já havia abandonado a produção, antes mesmo dos anos de 1960. Isso não impediu, porém, o brilho no uso de atores do peso de Charles Olka Boyer, Claudette Colbert e Barbra Stanick Wy, além do culto a obra dele, particularmente, com aval da crítica francesa e, nos anos de 1970, redescoberto, a partir de mostras. É no universo dos órfãos, viúvos, separados, idosos e no âmbito da rejeição que Sirk dá seus recados. "Imitação da vida (1959) e Almas maculadas (1958) são filmes impregnados por representações da morte, um dos elementos essenciais das tragédias gregas do qual bebeu", comenta o curador. Remexendo em acervos públicos e distribuidoras de todo o mundo, o esforço de integrar as fitas chegou: a fase americana, os melodramas estão todos em 35mm ; "alguns em CinemaScope e quase todos em Technicolor endiabrado, como diz Jean-Luc Godard", destaca o curador.
Na mostra vale a atenção à estética ; de beleza artificial ; do cineasta: foram 20 filmes em uma década para os estúdios da Universal. Dos palcos alemães, ele nutriu de referências o cinema norte-americano, com exemplos de popularidade como Sublime obsessão (1954) e Imitação da vida (1959). Os dois filmes, aliás, derivaram de novas roupagens para títulos assinados, nos anos de 1930, por John M. Stahl. No primeiro, com Jane Wyman, uma cega pode redimir, pelo amor, um homem que muito lhe causou prejuízo (Rock Hudson). Já no outro, o preconceito racial salta aos olhos, em meio a desavenças familiares.
Thrillers
Em ramos diversos, Sirk imprimiu originalidade para a obra, como o uso de 3D no western Herança sagrada (1954), avançado ainda por thrillers, como em Emboscada (1947) e Sonha, meu amor (1948). O adultério move Chamas que não se apagam (1956), enquanto o peso da culpa se instala em Hino de uma consciência (1957), centrado num piloto (envolvido em mortes, na guerra), que cria uma espécie de orfanato, no campo da Guerra da Coreia, e Música e romance (1953) centra o foco na fuga de um órfão.
Formado em filosofia e em história da arte, Sirk criticou a opressão das mulheres, em modelo de comportamento que perpetuava privações do porte das do antigo Egito (como em Tudo o que o céu permite) e estabeleceu contato com as ideias libertárias do poeta Henry David Thoreau (morto em 1862), que exploravam o teor de felicidades do contato com a natureza. Douglas Sirk: o príncipe do melodrama traz ainda um pacote de influências do mestre, em ramificações que alcançaram até Rainer-Werner Fassbinder, seguidor das "pegadas do desespero humano" mostradas por Sirk e presentes em obras como O medo devora a alma, de Fassbinder (a ser exibido).
DUAS PERGUNTAS // Pedro Maciel Guimarães
A morte e a tragédia tão presentes nos dramas ganham que representações, no cinema de Douglas Sirk?
Ela está organização espacial dos filmes. As casas do Sirk são construídas como tumbas, onde burgueses entediados se enterram vivos sob os pesos das convenções sociais (caso de Tudo o que o céu permite, por exemplo). A tragédia está também na briga dos heróis contra um inimigo maior (no caso do Sirk, a sociedade), onde muitas vezes os heróis saem perdendo. Sirk era um diretor banhado na cultura clássica, conhecia bem os autores gregos de teatro, assim como do teatro moderno. Ele fez filmes pessimistas, duros, uma verdadeira estética da crueldade, como poucos diretores no cinema americano.
Qual o lado dele pouco conhecido pelos cinéfilos?
Tem o lado cômico, dos primeiros filmes americanos (Sinfonia prateada, Música e romance, por exemplo), que tira sua leveza de filmes como 1; de abril (o primeiro filme de Sirk na Alemanha). São filmes inspirados na estética de Ernst Lubitsch, que se tornou grife com o chamado "toque de Lubitsch". Sirk fez filmes alegres, antes de se enveredar pelos dramas românticos. Tem também os filmes de critica social, que podem ser considerados subsidiários do melodrama, filmes onde Sirk critica a organização pactuada pelos americanos (Chamas que não se apagam e Tudo o que o céu permite), seu conservadorismo e que são filmes bastante atuais.
SERVIÇO
Douglas Sirk: O príncipe do melodrama
De hoje a 17 de junho, no Centro Cultural Banco do Brasil Brasília (SCES, Tr. 2, Lt. 22). Hoje, às 19h, Sangue rebelde (91min, em DVD) e, às 21h, Onde canta o rouxinol (85min, em 35 mm). Confira no Roteiro as classificações indicativas para os 34 filmes a serem exibidos na mostra. Entrada franca.