Professor de filosofia da USP, Vladimir Safatle é um dos raros intelectuais paulistas que defende Brasília. Não é por acaso. Ele viveu na cidade até os 13 anos, brincando embaixo dos blocos, entre as décadas de 1970 e 1980. Safatle tem se destacado como um dos estudiosos brasileiros mais combativos e polêmicos da atualidade, assumindo claramente uma postura à esquerda. Realizou palestra na sexta-feira, durante o seminário Democracia em Tempos de Mutações, no Senado Federal. Nesta entrevista, ele fala, de maneira provocadora, sobre Brasília, a falta de interesse do Estado em incentivar a cultura e também do desejo de mudança que invade jovens do mundo inteiro.
Qual a sua experiência de Brasília?
Passei a minha infância aqui, entre as décadas de 1970 e 1980, até os 13 anos de idade. É uma cidade maravilhosa. É o único lugar em que me sinto em casa. Me sinto acolhido em qualquer local que tenha um pouco a cara de Brasília.
O senhor já escreveu que Brasília é incompreendida pelo restante do Brasil. Em que sentido?
O restante do Brasil não consegue entender o que Brasília significa. E quão bela ela é, tem a beleza do espaço vazio, do olhar desimpedido, das formas geométricas que se deixam permear por uma natureza que não tem medo do espaço vazio. É uma cidade que deixa a natureza entrar. O projeto urbano não violenta o espaço natural. Não compreendemos a força da ideia modernista de construir, que reconfigura o que nos parece completamente natural. Brasília é a prova de que não há impedimento que as ideias não possam repensar. O projeto de Brasília repensou o que significam as estruturas elementares da avenida, da esquina e da habitação. Fala-se muito dos fracassos de Brasília, mas seria preciso lembrar os sucessos da cidade como experiência urbana.
E o que considera sucessos da cidade?
A própria constituição de uma superquadra é absolutamente formidável em uma cidade das dimensões de uma capital de quase 2 milhões de habitantes. Você podia soltar o seu filho em um espaço onde tem certeza de que não seria atropelado. Fantástico. Era sem cercas, tudo aberto, o elevador descia e dava diretamente para a rua. Não tinha guaritas, as casas das quadras 700 eram sem cerca, com espaço comum que não vi mais em nenhuma cidade. Infelizmente, a situação mudou muito em razão dos delírios de segurança da classe média. Mas, para aquele que cresceu nesse espaço, trata-se de algo inesquecível.
Apesar de todas as mazelas e as contradições, a capital do país cumpriu a sua função histórica ou fracassou?
Acho que Brasília é um projeto inacabado. Era uma cidade experimental e inovadora do ponto de vista urbanístico, arquitetônico, educacional e cultural. Mas isso não ocorreu porque nunca teve uma governança que assumisse a cidade dentro da perspectiva desse projeto. Salvo honrosas exceções, os governos são da ordem da inépcia, da incompetência e da catástrofe. É preciso lembrar o que a experiência de Brasília trouxe. Depois de Brasília, a reflexão sobre a vida urbana acabou. As cidades estão em colapso. Estão todas submetidas a um processo de especulação imobiliária absurdo que impede qualquer intervenção. E não assumimos essa situação nem começamos a pensar a partir dela. Por mais mazelas que tenha, Brasília conseguiu evitar alguns problemas que afetam a maioria das cidades.