Lá pela metade de Livro, o narrador arrisca uma graça e comenta o fato de certos autores escreverem sobre coisas que desconhecem. É uma alfinetada em José Luís Peixoto, o autor do romance. Uma alfinetada e uma maneira de o escritor português advertir os leitores: ele pode não ter vivido fisicamente alguns dos momentos caros à história de Portugal descritos no romance, mas alguma vivência ele teve, ainda que pela memória dos outros. Livro, que Peixoto autografa domingo após conversa com o público na Livraria Cultura do Shopping Iguatemi, trata de memória e vasculha parte da história recente de Portugal.
[SAIBAMAIS]Ilídio e Adelaide vivem em Galveias, vilarejo rural do interio com menos de mil habitantes. Ele, um garoto abandonado pela mãe, mulher de reputação suspeita. Ela, menina resgatada do ambiente familiar precário e superlotado por uma tia solteirona. O cotidiano em Galveias tem igreja, baile, cabras e uma vida morosa muito bem aproveitada pela meninada, que de inocente não tem nada. Ilídio sente o abandono da mãe, mas resolve a dor no silêncio, cresce e se apaixona por Adelaide. O rapaz quer casar mas, inexplicavelmente, a tia embarca a garota em um comboio em direção à França. Adelaide atravessa a fronteira graças a ;passadeiros; clandestinos. Seu destino: trabalhar em condições precárias em um país desconhecido. Aí começa a temática central de Peixoto.
Trecho de Livro, de José Luís Peixoto, autor português que participa de conversa com o público na Livraria Cultura do Shopping Iguatemi no domingo, às 15h
"Ainda de madrugada, quando o Josué desceu o caminho da fonte a correr, tropeçando nas botas desapertadas e espalhando pedras, o Ilídio não reagiu ao vê-lo. Da mesma maneira, não reagiu às suas palavras:
Atrasei-me, desculpa. Estava descansando, a pensar que era só hoje. Estava bem descansando. Há bocado, quando percebi que tinha sido ontem, até dei um salto na cama.
Ofegante, o pedreiro segurou na mala e no livro. Foi para agarrar no braço de Ilídio, mas segurou-lhe apenas na manga e deu o primeiro passo, o segundo, o terceiro. O Ilídio acompanhou-o, teria seguido qualquer pessoa para qualquer lado. A manhã era líquida, as cores eram feitas de vapor e o Josué não se calava:
Eu sabia que ontem, mas na quarta começou a parecer-me que ainda era terça-feira, andei todo o dia, andei para trás. Se tivesse passado uma sexta, eu tinha-me apercebido logo. Na casa da d. Milú, à sexta, fazem pato. Cheira.
O Ilídio assistia às ruas vazias. A terra ainda coberta pela cacimba, as pedras polidas. Lutava com o impulso de acreditar que estava a ser levado à mãe porque tinha passado a noite inteira a esperá-la, a imaginar a sua chegada e a decepcionar-se repetidamente. O Ilídio conhecia mal aquela ponta da vila. Chamavam-lhe o São João, tinha a rua de São João, que acabava no campo, e a Capela de São João. À porta de uma casa de paredes a escamar cal velha, o pedreiro começou a baralhar um molho de chaves. Olhou para uma, como se fosse diferente de todas as outras e, com essa, abriu a porta. O Ilídio entrou, sentiu um cheiro frio e estranho, salgado, em todos os lados, todos os cantos. À procura, olhou até para as vigas do teto, entrou no quarto maior e saiu a correr, entrou depois no quarto mais pequeno, única divisão que restava, e saiu morto. Acreditou que nunca mais voltaria a ver a mãe. Tentando animá-lo, o Josué perguntou:
Já foste ao quintal?"