Diversão e Arte

Versos de Quintana ganham nova roupagem com a publicação de toda sua obra

Nahima Maciel
postado em 24/08/2012 09:09

De velhinho doce e angelical, Mario Quintana tinha pouca coisa. O jeitinho, talvez. O caminhar e o rosto cativante, de olhos grandes e sorriso de lagartixa. E só. Porque quando Quintana se apossava da caneta para riscar versos no papel, gostava era do deboche, da ironia inteligente, da postura zombeteira. E antes de ser o velhinho cuja presença constante nas Feiras do Livro de Porto Alegre encantava os gaúchos, era um jovem muito semelhante ao velho poeta morto em 1994, aos 88 anos. ;O fato é que nunca evoluí. Sempre fui eu mesmo;, confessou, certa vez, ao ser questionado sobre sua suposta evolução poética da lírica parnasiana ao modernismo (muito contestada, aliás). Talvez fique mais fácil comprovar a afirmação a partir de agora. Sob a coordenação de Ítalo Moriconi, a Alfaguara reedita, até 2014, 17 livros do gaúcho de Alegrete. A empreitada começa com três volumes.



Canções reúne os três primeiros livros do poeta: Canções, Sapato florido e A rua dos cataventos. Quintana começou a escrever antes da adolescência, mas só publicou o primeiro livro aos 34 anos. A rua dos cataventos é um conjunto de 35 sonetos contemplativos nos quais o poeta reflete sobre seu próprio ofício. Canções e Sapato florido vieram, respectivamente, em 1946 e 1948. Os outros dois volumes nasceram nos anos 1970. Apontamentos de história sobrenatural, publicado em 1976, e A vaca e o hipogrifo, de 1977, marcam a metade da vida produtiva do poeta, uma escolha deliberada e uma tentativa de enfatizar os versos de um autor mais maduro, porém não menos sedutor.

ENTREVISTA DE ÍTALO MORICONI


Por que o Mario Quintana se estabeleceu como um poeta tão popular?


O lírico é essencialmente popular. Os grande poetas líricos são essencialmente populares. Um Gonçalves Dias, uma Cecília Meireles, eles têm sua popularidade. Mas eles não são poetas que se dirigem a outros poetas ou intelectuais, como os metafísicos ingleses ou como João Cabral de Mello Neto, que incorpora toda uma questão ao avesso de lírica popular através da métrica em Morte e Vida Severina. Acho que a poesia popular está sempre fazendo um trânsito entre isso, os épicos e os metafísicos têm sempre que saber esse lado lírico porque a linguagem poética está sempre um pouco transitando. Não é filosofia e também não é canção popular. Está sempre transitando entre esses dois mananciais.

Mesmo em um país no qual se lê pouco, ele conseguia ser uma figura popular;

Era adorado, decorado, realmente popular. Quando a pessoa diz que no Brasil não se lê poesia, calma lá! Tem poetas que são muito lidos e um deles é o Mario Quintana. Acho que a popularidade dele começou muito no sul e em função da coluna de jornal, porque o Mario Quintana mantinha um diálogo constante com o leitor de literatura gaúcha. Ele é um poeta que se comunica o tempo todo com o leitor literário. A crônica dele era uma espécie de correia de transmissão de uma tradição literária. Acho que uma persona alimentou a outra: a persona do poeta e a do cronista. Só que a do cronista assume um papel esclarecedor, intelectualizado, aquela simplicidade fingida, aquele humor brejeiro, como se no contexto intelectual gaúcho ele fosse o representante de uma cultura literária. Na poesia ele faz questão de usar outro tipo de máscara que é essa máscara da relação direta com os temas líricos essenciais. Só que no contexto dele, do arrabalde porto alegrense, da província. Ele conseguiu ultrapassar a barreira e se tornar um poeta nacional. Essa coisa do arrabalde não é de uma província marcada, é o provinciano no sentido de uma imagem universal do provinciano.

Você diz que ele já começou moderno e nunca foi parnasiano. Por que isso?

Ele começou a escrever nos anos 1930, então o modernismo tinha acontecido na década anterior. Quando ele começa a escrever o modernismo já está na etapa anos 1930, quando o Drumond faz Sentimento do mundo, já deixou para lá o poema curto, que no caso dos modernistas de 1922 era ium poema irônico, uma crônica, uma piada. Em certo sentido, o Mario Quintana retoma uma poética naquele momento já ultrapassada porque o modernismo estava se aprofundando e ele volta a uma certa simplicidade . O Quintana começa a escrever num momento em que o modernismo já se tornou cânone e já está num processo de transformação, então o tipo de síntese formal que ele faz é muito diferente do tipo de síntese dos poetas que começaram escrever nos anos 1920.

E a crônica, onde ela aparece na obra de Quintana?

Ele é um grande cronista, gostosíssimo de ler. Acho que a relação entre poesia e crônica é uma relação permanente na poesia do século 20: todos os grandes poetas, de Bandeira e Drumond a Cecília e Mário, todos escreveram em jornal. Acho que a relação entre o poeta e o cronista é uma característica que define a poesia brasileira. Então ele é apenas mais um nisso. Mas ele tem uma característica própria porque tem uma presença muito forte num contexto regional que é o Rio Grande do Sul. Na minha opinião, ele mistura verso e prosa no espaço do jornal mas preserva o verso dele. Enquanto um Bandeira faz um poema tirado de uma notícia de jornal, e contamina o verso com o espírito da crônica de jornal, o Quintana mantém o verso no lugar próprio. É um verso livre, modernista, que comporta o soneto mas é diferente

Você identifica a poesia de Quintana como lírica pura. O que isso quer dizer?

Seria aquela poesia que fala mais rapidamente ao sentimento poético e que usa um repertório clássico de imagens acrescidas de outra como a flor, a lua, de maneira simples, mas sintetizando esses sentimento. O lírico puro seria a manifestação básica do poeta. A imagem simples, sem complicação nenhuma, sem firula nenhuma.

Qual o limite entre a facilidade e a complexidade na poesia do Quintana?

Acho que toda metáfora tem um ível de complexidade. Mas eu não pertenço ao grupo de pessoas que menospreza certos autores ou poetas achando-os metafóricos demais. Eu gosto de uma poesia cuja característica seja a simplicidade. Acho que existe lugar para ela também, assim como existe o poeta que faz filosofia. O Mario Quintana representa um outro tipo de impulso, ele faz questão de ser um poeta assim, ele não quer ser um intelectual de jeito nenhum e ele afirma isso em vários poemas. Quer mesmo aquela percepção do momento, só que isso é muito construído.

E os temas? Como podemos elencá-los na obra de Quintana?


O tema é provinciano, mas no final da vida ele tematiza muito a transformação, essa coisa da cidade grande, dos prédios, da metrópole, o fim daquela coisa calma, dos passarinhos. Na poesia, acho que ele é mais melancólico que humorista. Ele tem um humor, principalmente na crônica, mas a poesia do Mario Quintana tem um elemento sentimental forte, porém sem sentimentalismo água com açúcar, é um sentimento elegíaco. Ele tem uma reflexão muito constante sobre o tema da morte que vai mudando de figura ao longo do tempo como se fosse uma aceitação cada vez maior. Demorou muito, ele só morreu com 88 anos, mas desde novo ele tematizou muito isso e a solidão. Uma das coisas que mais gosto no Quintana é essa percepção de coisas mínimas que só podem sair da imaginação de quem é e valoriza muito a solidão.

POEMAS

Libertação
(do livro A vaca e o hipogrifo)
A morte é a libertação total:
a morte é quando a gente pode, afinal,
estar deitado de sapatos;

Liberdade condicional
poderás ir até a esquina
comprar cigarros e voltar
ou mudar-te para a China
; só não podes sair de onde tu estás.

O tempo
(do livro Apontamentos de história sobrenatural)
O despertador é um objeto abjeto.
Nele mora o Tempo. O Tempo não pode viver sem nós, para não parar.
E todas as manhãs nos chama frenéticamente como um velho paralítico a tocar a campainha atroz.
Nós
é que vamos empurrando, dia a dia, sua cadeira de rodas.
Nós, os seus escravos.
Só os poetas
os amantes
os bêbados
podem fugir
por instantes
ao Velho; Mas que raiva impotente dá no Velho
quando encontra crianças a brincar de roda
e não há outro jeito senão desviar delas a sua cadeira de rodas!
Porque elas, simplesmente, o ignoram;

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