Antes de chegar à metade das 208 páginas de Livro das horas, Nélida Piñon faz uma inquietante afirmação. ;Assaltada por sobressaltos seguidos de um torpor que amortece as juntas, juro não voltar a criar;, escreve. É apenas um lamento, um indício do desassossego permanente provocado pela necessidade criativa e seu inevitável sofrimento. Nélida está com insônia e remói trechos de um romance em processo de escritura. Lá pelas tantas, ameaça a si mesma de cortar a pena e simplesmente tirar proveito de um bloody mary em uma atitude totalmente descompromissada.
Claro, a autora não falava sério em largar a escrita. Não poderia. Burilar a linguagem é vital para Nélida. É a fonte de onde extrai a felicidade calorosa da qual se diz portadora. Livro das horas não se encaixa em gêneros. Ficção, memórias ou biografia não servem para este pequeno relato de impressões sobre a vida e a morte, sobre as relações humanas, o amor, a traição e, para não ficar devendo, a literatura. Um balanço corajoso, nostálgico e, em muitas passagens, saudoso, no qual Nélida é a própria narradora.
Confira abaixo entrevista com a escritora
O leitor é maltratado no Brasil?
Ele é maltratado porque não consegue ser leitor. Ele recebe uma educação fraca, de má qualidade. Ele não chega a ser leitor. Não há no centro educacional brasileiro a figura do leitor. Como ele vai ler se mal sabe ler? Se não sabe entender o que está lendo em geral? Se não teve condições de poder desenvolver esse dom milagroso da leitura?
A senhora é inquieta?
Sou inquieta intelectualmente. Mas minha mãe dizia: minha filha, você é capaz de ficar olhando uma parede, um quadro, parece, assim, uma contemplativa. Tenho esse lado também. E de repente me levanto, ando pela casa, me entusiasmo. Ontem mesmo tive seis compromissos porque acumulei tudo num dia só. Sem ruídos, sem exaltações, sem achar que é demais pra mim. Vou abatendo as coisas como se estivesse derrubando bonequinhos. Vou continuando. Conversei com meus porteiros da acadamia (Academia Brasileira de Letras), sei das coisas deles, aprendo muito com o outro, aprendo tanto!
A senhora diz que aprendeu a perder utopias. Perdeu muitas? Quais?
Certas utopias são prejudicias, outras são maravilhosas porque restabelecem a nostalgia da juventude. Temos que nos esforçar para fazer da realidade nossas utopias, mas uma realidade que está ao nosso alcance. Eu acho que a harmonia do lar é uma utopia maravilhosa. A utopia da boa vizinhança, a utopia da vida civil, a utopia de olhar para a Constituição como a nossa Bíblia. São as utopias possíveis. E precisamos tomar cuidado com aquelas utopias que pretendem reformar o mundo como se ele fosse inaugural. Nós não somos inaugurais.
Para quem a senhora escreve?
Para quem quiser me ler, mas também com a esperança de que alguém que está pequenino hoje venha me ler. Eu não quero que soterrem meus livros. Quem diz isso está mentindo. Não que tenha expectativas. Também não me alimento de expectativas. Mas, evidentemente, tenho apreço por alguém que diz que me leu. Mas nunca pergunto, nem a amigo íntimo, se me leu. Nunca. Faz parte da minha dignidade.
E como é sua relação com a crítica?
Há equívocos e há também, em certos casos, a expressão de uma má fé. Qualquer pessoa que critica está sujeita à má fé porque está sujeita ao arbítrio pessoal. Não consegue livrar-se dos seus preconceitos, da sua intolerância. A crítica tem que se livrar dos seus preconceitos, da sua intolerância. Não falo dos ensaístas, que têm tempo longo de maturação, que têm uma formação mais sólida. Mas há uma certa crítica que corre o risco de emitir um juízo de valor sem uma reflexão mais profunda. Todos nós, incluidno-me, estamos sujeitos a grandes falhas. Somos grandes falíveis. O que quero dizer com isso? Continue a escrever, independente do que podem dizer de você. Essa é a grande saída.
Por que ficou tão chateada com a informação sobre a mãe de Clarice Lispector?
Essa informação me chocou porque fui amicíssima de Clarice. Nos falávamos diariamente durante 17 anos, eu estava ao lado dela nos últimos 40 dias, suspendi a minha vida para estar a serviço de Clarice no hospital. Eu nunca ouvi Clarice, Elisa ou Tânia, as três irmãs, dizerem qualquer coisa sobre a mãe. E mesmo sobre a doença da mãe, porque ela teve qualquer coisa de paralisisa, algo muito grave. Ela era de uma discrição profunda não só em relação à mãe como em relação a temas profundos da vida dela. Não posso dizer nada, mas quero saber de onde veio a informação. Por que, se as três irmãs já morreram e eram discretíssimas sobre isso e não há papel, não há documento? De onde veio essa notícia? Quem deu?
Foi sofrido escrever o livro?
Sabe por que não foi tanto? Porque penso nisso todos os dias. Claro, porque penso todo o tempo padeço de doses diárias de sofrimento. As minhas constatações provocam pequenas dores, ou grandes, mas também alegrias e me provocam sabe o quê? Paciência. É uma coisa que admiro muito, a paciência. Não é a resignação. Sou mulher exultante, calorosa. E todos os dias penso na minha finitiude, nos objetos da casa que representaram a memória dos que amei e que me amaram. Tudo em mim repercute. Não sou indiferente a nada. Tenho tanto pavor da decrepitude. Acordo de olho arregalado, mas muito serena. Não sou dada a agitações desnecessárias. Por isso gosto de observar o próximo, adoro perder tempo nas gentilezas, o que para muita gente é perda de tempo. Comigo time não é money não. Tempo é uma porção da vida que vai me ajudar a entender onde estou.