Até a primeira troca de cartas editada em Fim de tarde com leões (Geração Editorial), seu primeiro livro de ficção, Paula Fontenelle não sabia o que era escrever sem a cabeça povoada de preocupações com o texto. ;Antes, só tinha feito livros jornalísticos, em que você lida com fatos, verificação de números. Ouvia mil vezes a entrevista para checar se o que escrevi estava fidedigno;, conta. Autora de dois títulos de livro-reportagem, Iraque ; A guerra pelas mentes e Suicídio ; O futuro interrompido, finalista do prêmio Jabuti em 2009, a jornalista assina, com um escritor que prefere ser reconhecido por um misterioso pseudônimo, romance epistolar sobre um homem e uma mulher que já não dividem mais a mesma cama. A escrita do livro seguiu, de fato, a estrutura de um vaivém de correspondências, em que Fontenelle escreveu as missivas de Lúcia e o amigo anônimo, avesso a socializações, as de Pedro.
A pernambucana natural de Recife, que vive há oito anos em São Paulo, teve a ideia de redigir um livro a quatro mãos em 2007. Mas teria que ser um projeto realizado a distância, coerente com o estilo adotado de escrita. A única regra era: os dois deveriam enviar cartas semanalmente (por e-mail, para evitar extravios e encontros presenciais), durante um ano. ;Escolhi o Guzman porque conhecia a capacidade criativa e o texto dele. Não tive nenhuma apreensão. Mas tive surpresas. Embora soubesse que cada um fosse dar conta continuidade à história do jeito que quisesse, ele me encurralou em vários capítulos. Segundo ele, eu também fiz a mesma coisa;, explica.
Confira trechos do livro Fim de tarde com leões, de Paula Fontenelle.
De Lúcia
"Quanta mistura de sentimentos, você continua o mesmo: mantém a distância -- que agora me parece maior -- enquanto revela, sem querer, o afeto que insiste em esconder de si mesmo. Se nas minhas palavras você destacou a culpa, nas suas ressalto a solidão. ;Exílio compulsório?; Por acaso agora se tornou fugitivo? Duvido, pelo menos dos outros.
Tudo bem, se quer um pouco de jogo em nossa troca, que assim o seja, afinal, bem sabe que eu gosto de um pouco de mistério, mesmo tendo certeza de que um dia você cederá e nos encontraremos sem portadores anônimos e sem ridículos envelopes comerciais. Se por agora essa é a única forma de tocá-lo, aceito mais esse capricho seu. Talvez até o mereça. E, sim, me assustou o tal portador, achei que trazia uma notícia de morte."
De Pedro
"Pois muito bem, então.
Você se tornou uma escrevinhadora de certo modo caudalosa. Não estou reclamando. Constato que você sempre foi mais loquaz que eu, mas palavras tão alongadamente escritas são novidade para mim.
Lembro-me de ter apenas uma carta sua, de quando você concluiu a faculdade e foi em viagem comemorativa com um grupo de colegas. Era uma carta juvenil e entusiasmada, e pasme, você não falava em doença ou morte, exceto por um machucado no tornozelo, resultado de uma afoiteza alpinista. Era também uma carta afetuosa, não muito apaixonada, mas com todos os sinais de comprometimento amoroso (e insinuações de desejo, ou estou enganado?).
Serviu-me muito aquela carta. Serviu-me? Não, foi mais: um consolo e um remédio e uma indicação para a mudança de rota para fora daquele meu casamento equivocado, bem antes do paradigma e termo dos setes anos."