Carlos Dias Lopes - Especial para o Correio
postado em 19/05/2013 19:01
Cannes (França) -- O jovem Robert não tinha ainda partido do Minessota. O estudante Allen não havia ainda abandonado a universidade. O aspirante a artista Zimmerman não trocara ainda de nome. O universo que os irmãos Cohen retratam em "Inside Llewyn Davis", que já pinta como favorito à Palma de Ouro em Cannes, precede o aparecimento da cena folk tal como o mundo acostumou-se a ouvi-la e a percebê-la: intermediada pela voz esganiçada e retumbante de Bob Dylan. O filme agradou, mas os Cohen não conseguiram explicar muito bem como vão lidar com tão ultrajante omissão quando o assunto é a trajetória de um estilo musical intimamente ligado ao criador de "Blowing In The Wind".
Em encontro com a imprensa no festival, Ethan e Joel evitaram as polêmicas, sobretudo quando as perguntas envolviam o nome de umas das vacas sagradas da música norte-americana. Mas era evidente que Robert Allan Zimmerman dividia como um muro de concreto as intenções da massa de jornalistas ávida por uma frase torta e o mal disfarçado riso nervoso dos irmãos realizadores. Afinal, eles ousaram mostrar em seu filme um passado recente da cena musical dos Estados Unidos, em que esta prescindia da impregnação de Dylan. Acuados, coube ao mais velho dos Cohen, esclarecer: "Não nos sentimos à vontade para falar de Bob Dylan. Nos Estados Unidos, ninguém pode criticá-lo". Da mesma forma, o ator Oscar Isaac, que vive o proto folk Davis do título do filme, eximiu-se de qualquer possível mal entendido, genérica e grosseiramente abusando de clichês do tipo "Nos cantores de folk a música vem da alma".
Justin Timberlake, vivendo no filme o cantor Jim, uma espécie de transição entre os artistas folk de esquina do final dos anos 50 e aqueles que a partir de Dylan ganhariam o grande público, mordeu a isca. O cantor-ator, ainda que indiretamente, deixou uma pista para alguma futura polêmica envolvendo o filme e o grande nome da música popular ianque: "Uma vez um grande conhecedor da indústria da música me disse que se pudermos ser o segundo a fazermos alguma coisa, podemos tirar grande vantagem disso".
Dylan não foi o primeiro, mas por ser o herdeiro mais bem sucedido da tradição da música de raiz norte-americana, é como se antes dele, todos os que investiram no veio tivessem sucumbido ao amadorismo, ou no máximo, alcançado algum restrito sucesso. "Dylan é uma presença massacrante", diriam os franceses do Studio Canal, distribuidores do filme dos irmãos americanos.
Greenwich
Bem, o filme dos Cohen não tem propriamente uma história, mas envolve o espectador no universo particular do cantor e violonista folk Llewyn Davis. Ele erra pelas ruas do Greenwich Village, na segunda metade da década de 1950. Vagueia de esquina em esquina por um período quase totalmente ignorado pela maioria dos fãs e historiadores do gênero, os quais costumam cortar caminho passando diretamente de Peter Seeger (ao menos um predecessor sempre lembrado nas biografias do famoso astro) a Bob Dylan. É uma cena original, formada por músicos amadores, sinceros e entusiastas, que fazem quase um voto de pobreza em nome do folk. Sobretudo, cultuam os sons da América rural e detestam um já existente "pop-folk", apontado como música comercial e enquadrada. Weavers e Harry Belafonte, entre seus representantes. É gente arredia que toca por gorjeta, olhando para os próprios pés, sem qualquer preocupação com afixar nome em cartaz.
Pelo filtro sempre muito particular por meio do qual os irmãos Cohen fazem seu cinema, o que lhes interessou foi a relação tortuosa de Llwynn com a vida, onde a música e a ambiência em torno dela são mais importantes do que uma história fechada. O original Llwyn Davis, o músico Dave Van Ronk (de cuja autobiografia nasceu o filme), obviamente perdeu o interesse no gênero quando este se democratizou e virou um produto comercial. Restou-lhe a fama de ser uma das figuras de destaque da corrente inicial.
Um dia, pesquisando sobre seu tema favorito na livraria Folklore Center, no Greenwich Village, Dave Ron Ronk cruzou por um jovem récem-chegado a Nova Iorque. Era janeiro de 1961. A partir dali a história do folk e da música popular americana nunca mais seria a mesma.