Diversão e Arte

Novo livro de Edney Silvestre reafirma a qualidade reconhecida com o Jabuti

Em Vidas provisórias, protagonistas da narrativa estrebucham com os relatos de vida da faxineira Barbara, do libertino Sílvio e do estudante (e futuro ativista) Paulo

Ricardo Daehn
postado em 02/09/2013 06:15
O autor conquista o leitor pelas nuances de cada trama

;Você é muito moça para; Para; Para se aposentar da vida;, ;Estão acabando comigo em pequenos pedaços; e ;Você não esteve aqui. Não há nenhum registro; pontuam alguns trechos do livro Vidas provisórias, de Edney Silvestre. Atingidos por uma corrente de negativas lideradas por terceiros ; na prática, associados para reprimirem existências ;, os protagonistas da narrativa estrebucham. Entrecortados, com desenvolvimentos entre 1970 e 2001, os relatos de vida da faxineira Barbara, do libertino Sílvio e do estudante (e futuro ativista) Paulo contemplam a entrevisão de fatos políticos que extrapolam a influência macro (social), para desembocarem em mudanças para a insípida vida aos quais estiveram obrigados. Pesam panos de fundo da ditadura, da ilegalidade no exterior e de um leito de morte. Tudo fora de ordem.

Ciente de que o suicídio soa como ;vitória final dos torturadores; (recado dado por meio de um dos personagens), Edney Silvestre opta pela vida, ao deslanchar o futuro de Paulo. Há um carrasco, na rota Chile-Suécia-França do exilado brasileiro, que indica a preocupação com os ;subversivos vivos;, distanciados da posição de mártires. É na Estocolmo de 1974 que Paulo ; intato pelo amor (aos 25 anos) e acostumado ao empilhamento de codinomes ; percebe a troca de sorte.

Questionador ; ;podemos escolher nossas estradas?;, reticência ;, Paulo, aos poucos, se descola da cartilha proclamada pelos donos do Brasil: ;Aqueles que decidem o que somos e seremos, qual nossa utilidade, onde e de que forma iremos servi-los;;. Desencanta das acusações de estar imbricado no sequestro do diplomata Ehrenfried Ludwig von Holleben e das visões involuntárias de horror, entre as quais os ventres de gestantes, abertos a maçaricos, na pungência da ditadura argentina. Fraqueja, em parte, o capitão Molina (dono de identidade espantosa, na trama), apegado à vontade de vê-lo castigado, a exemplo de guerrilheiros da vida real, como Alex Polari (citado no livro).

Amparado no relato de elos fraternais (que dizem respeito ao sorumbático ex-torturado), o autor introduz uma pitada de alívio no fluxo de recorrentes pesadelos, a todo tempo ameaçadores, na vida do ex-estudante. Paulo está danificado pelos efeitos dos anos 70, a ponto de rechaçar a conjugação do ;verbo amar;. Pesa demasiado o ranço da época em que ;o ditador do Brasil era um militar fã de futebol e da música ufanista e piegas que celebrava nossa fertilidade;. Realidade bem diferente do paraíso momentâneo em que Paulo e a moradora de Estocolmo Anna ;roçam, encantados, suas peles de tons e continentes diferentes;.

Com aguçada sensibilidade, no plano da delicadeza (ou, por vezes, no âmbito do atrito e da laceração), Edney Silvestre investe em recursos táteis, e do não expressado. Numa certa medida, ecoa Dalton Trumbo (Johnny vai à guerra), em momentos de incomunicabilidade. É o caso do subtexto que reveste o imaginário da faxineira Barbara, numa passagem teatral, apegada aos sofrimentos do patrão Sílvio, abatido pelos efeitos da Aids. ;Tudo meu está sendo comido por dentro, mas eu não sinto dores; pontua uma alusão à empatia da moça, filha de um motorista, chegada aos Estados Unidos, nos anos de 1990, para satisfazer outro traçado de vida indefinida descrito pelo autor.

Drama
Num rastro identificado com o que seja ;anódino;, Barbara carrega a inesperada riqueza de comandar o arco dramático mais emocionante de Vidas provisórias. Se praticamente ganha forma no capítulo batizado (ironicamente) de Exit (que seria mais adequado à saída), quando da sua entrada em terreno ianque, aos bocados, se vê encorajada a sair da postura ;neutra;, bastante destoante da impetrada pelas habitantes de um dos núcleos femininos aos quais Barbara atende, na condição de faxineira.


Donas de atitudes agressivas, prostitutas casadas (e com vidas clandestinas) dão contraste à moça caracterizada por desejos sufocados que, por exemplo, a obrigam a desviar os olhos de um homem desnudo, preparado para lhe tirar o sossego. Desbocada, a corja de biscas despeja preconceitos, como quando diferenciam grupos como os das Cachorras e o das Peruas. Do segundo, dão relevo a ;essas mulheres recentemente enriquecidas, de cabelos alisados e tingidos, idades apagadas por bisturis e injeções, faces e corpos alterados cirurgicamente;;. Na via contrária, de rejeição da própria imagem, Silvio, o patrão gente boa de Barbara, evita espelhos.


Detido em impossibilidades como essa, o autor conquista pelas nuances de cada trama. Moradora do Queens, Barbara é uma fonte de vontades abafadas (;ela deseja acreditar que um dia conhecerá Copacabana;) e é na inversão destes limites que Vidas provisórias ganha estofo. Um simples, mas atento, passeio dominical por Nova York, e sentenças marcantes, como ;Minha vida provisória acabou no momento em que você nasceu, meu filho;, prenunciam o nocaute, com a leitura do último capítulo Um encontro (ou a arte de perder), que vem enriquecido com um paralelo à imortal criação da poeta Elizabeth Bishop.


Trecho do livro

;Sorria, da mesma forma aparentemente desarmada e promissora com que conquistara seu lugar, pequeno, mas seu, na cidade acostumada a devorar levas constantes de rapazes encantadores, ambiciosos e despreparados para a rotina do ;cão come cão; nova iorquina.;

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