Diversão e Arte

Emmanuel Carrère retrata tensão vivida no país comandado por Vladimir Putin

A obra do escritor francês teve a produção interrompida e abandonada após autor descobrir participação de Eduard Limnov com guerra da Bósnia

Nahima Maciel
postado em 28/11/2013 08:19

Carrère: A Rússia é uma espécie de vulcão perpétuo há muito tempo. Mas tem algo de excitante, mesmo que seja um país brutal, difícil

A vontade de escrever sobre Eduard Limonov, o russo dissidente que enfrentou Vladimir Putin nas eleições e defende a volta da Revolução, começou a assombrar o escritor francês Emmanuel Carr;re nos anos 1990. Primeiro, ele trabalhou em uma série de reportagens para uma revista francesa. A vontade, no entanto, continuou latente.



Durante uma viagem à Rússia para investigar e escrever sobre o assassinato da jornalista Anna Politkovskaia ; ativista cujos constantes artigos críticos em relação à guerra da Chechênia incomodavam bastante Putin ; , Carr;re teve uma surpresa. Limonov, dono de um currículo que passa pela atuação na mílicia sérvia na guerra da Bósnia, era admirado e quase venerado pela elite democrática russa. O fato é tão contraditório quanto o é a própria Rússia, um detalhe suficiente para acender uma luz vermelha na cabeça do escritor.

Mordomo

Limonov foi um livro difícil e o protagonista, alvo de sentimentos mistos por parte do autor, que chegou a interromper a escrita e a abandonar o livro uma vez. Carr;re ficou com nojo de seu biografado quando descobriu sua participação na guerra da Bósnia. Mas também se deixou seduzir pelo poeta e romancista punk-concreto, que fascinou uma geração de leitores, e pelo dissidente que abandonou a União Soviética nos anos 1970 para se tornar mordomo em Nova York. ;Tive a intuição de que contar a vida dele permitiria fazer, ao mesmo tempo, um romance de aventura quase no estilo Alexandre Dumas e um livro de história sobre a União Soviética e a Rússia dos últimos anos;, conta o escritor.

Por que dedicar uma biografia a Limonov?

É uma pessoa que conheci nos anos 1990, quando ele era um dissidente rock;n roll muito apreciado no pequeno meio de leitores franceses. Como jornalista, escrevi artigos sobre ele e o entrevistei algumas vezes. Eu gostava muito dos livros dele e o conhecia um pouco. Na década seguinte, fiquei muito surpreso e incomodado pela sequência de fatos da carreira dele. As experiências de guerra ao lado dos sérvios, depois a criação de seu partido na Rússia, enfim, por tudo que ele fez quando deixou a França. Ao mesmo tempo, eu via isso de longe. Não vou dizer que pensava nele com frequência. Eu ficava intrigado pela virada da qual ele foi acometido. Então o azar das circunstâncias fez com que, a partir de 2000, eu começasse a ir muito à Rússia. Em determinado momento, fiz uma reportagem junto aos democratas da Rússia e fiquei muito surpreso que Limonov, que é alguém que se tornou um fascista conduzindo milícias sérvias, fosse muito apreciado nesse meio de democratas irrepreensíveis. Isso me intrigou e é uma das razões que me conduziram a fazer uma longa matéria sobre ele para uma revista francesa. Passei 15 dias com ele. Não o havia visto nos últimos 15 anos. E no fim de 15 dias eu não sabia muito bem o que pensar dele e do que ele se tornou. Ao mesmo tempo, eu sentia que as 20 ou 30 reportagens que fiz não eram suficientes. Eu queria escrever mais.

Uma coisa muito atraente no livro é o fato de que o senhor não esconde estar confuso diante do personagem. Isso foi difícil?

Teve momentos, durante a escrita desse livro, em que eu quase desisti. Eu até o abandonei durante um tempo. No fundo, eu estava com nojo do personagem, especialmente no episódio balcânico de sua carreira. Ele era praticamente um criminoso de guerra. Retomei o livro porque, apesar de tudo, achava que essa história era interessante, que o que contava ou permitia contar valia a pena. Tive sentimentos muito mistos em relação a Limonov. Houve momentos no qual o achava detestável e outros em que eu tinha até certa estima e admiração por ele. Não tentei unificar, fazer uma espécie de síntese de onde ele sairia, fundamentalmente, um cara legal ou execrável. Preferi deixar (no livro) o traço desses sentimentos sucessivos que tive e que correspondem a determinados momentos de sua vida. Para mim, é uma coisa ao mesmo tempo desconfortável e excitante.

Há alguma coerência nesse personagem tão contraditório?

[SAIBAMAIS]É difícil. Eu acho que há mais incoerência, o contrário de coerência. No fundo, Limonov é um fascista. Não é somente uma questão política, é quase uma posição existencial. É um homem que acredita na lei da selva, que o estado de direito é uma ilusão ou uma piada e tudo isso faz dele um fascista. Por outro lado, é uma pessoa que está sempre do lado do mais fraco. É curioso. Aparentemente, isso não casa com o fato de ser um fascista. Ele está sempre ao lado dos pequenos e, mesmo quando ele tentou fazer política, nunca ficou do lado de qualquer poder. Isso eu acho digno de admiração. É um cara que tem 70 anos e ainda é um pária. No fundo, ele poderia perfeitamente ter cavado um lugar. Quando saiu da prisão, tenho certeza que o mundo da literatura contemporânea da Rússia ficaria maravilhada de acolhê-lo e dizer "a ovelha negra voltou para nós, vamos dar a ele uma dacha, um carro com motorista e um trabalho de escritor". E ele não fez isso e acho isso digno de admiração.

Para você, Limonov é um heroi?

Sin, mas um herói não é alguém ruim. É alguém que passou a vida inteira tentando ser um personagem de romance. Isso eu acho que ele conseguiu. E um pouco graças a mim. E ele mesmo diz isso. Não tenho escrúpulos em relação a isso, fui eu quem escreveu o livro. Agora, um herói no sentido de alguém que serve de exemplo, não.

Existe lugar para Limonov na Rússia de hoje?

Politicamente, eu não acredito. Além do fato de uma oposição hoje ser muito problemática, tem o fato de que o tempo de Limonov passou. Limonov quer fazer a revolução e ele está sozinho querendo fazer isso, ninguém mais quer fazer a revolução, eles já fizeram e não têm a menor vontade de recomeçar. Então, politicamente, ele está numa rua sem saída. No entanto, ele acredita em uma coisa e acho que ele tem razão: no dia em que morrer, ele será considerado um grande escritor russo. Pelo menos na Rússia. Primeiro, porque ele realmente teve uma grande influência nos escritores e porque, no fundo, ele tem uma experiência muito maior que a maioria dos escritores russos. Ele viveu muito mais coisas, ele conhece muito mais o mundo ocidental, ele é muito menos provinciano que a maioria dos autores russos.

O autor tem um certo fascínio pela Rússia, país que visita com frequência e sobre o qual escreve há mais de uma década
Liberdade de expressão é algo delicado na Rússia de hoje?

Tudo que se refere ao poder político é extremamente complicado. Há uma coisa que não entendo bem e que pode ser completamente naif da minha parte é que, no fundo, me parece que o poder na Rússia está muito atrasado em relação à sociedade. Quer dizer, a sociedade das grandes cidades, essa classe média urbana de pessoas de 40 anos que são a força vital do país. Tenho a impressão de que a reivindicação de um pouco mais de democracia seria muito aceitável para o poder, mas o poder não quer e, para mim, isso é misterioso, incompreensível. Mas é assim.

O que é a Rússia para você hoje?

Quando se vive, como eu, na França, que é um país que tem suas dificuldades, claro, mas é relativamente tranquilo e bastante poupado há algum tempo pelas convulsões da história, temos a impressão que a Rússia é uma espécie de vulcão perpétuo há muito tempo. Então tem algo de excitante, mesmo que seja um país brutal, difícil. Mas há algo muito romanesco nesse país, nos destinos. Um destino como o de Limonov é muito especificamente russo e se você pegar outro caso, como a figura de Mikhail Khodorkovsky, um dos homens mais ricos da Rússia que está na prisão, tudo isso são destinos muito romanescos e atraentes para um francês escritor.

Qual o valor da liberdade individual na Rússia de hoje?

Menos que no meu país, com certeza. Mas a reivindicação da liberdade individual também é bem menor, com certeza.

Eles não permitem a liberdade de expressão, mas acolhem uma figura como Eduard Snowden, que reivindica liberdade de expressão em relação aos Estados Unidos. O que isso diz sobre a Rússia?

Falar do que não está bom nos Estados Unidos sempre foi um esporte russo-soviético formidável. Tem histórias, como por exemplo a de Billy Wilder, o cineasta americano, que foi convidado a ir à União Soviética e que, em determinado momento, tenta de falar abertamente sobre a repressão. Imediatamente dizem para ele "sim, e se o senhor falasse dos linchamentos no sul dos Estados Unidos"? Mais que dos gulag ou da repressão, os soviéticos adoravam falar dos linchamentos no sul dos Estados Unidos.

A matéria completa está disponível para assinantes. Para assinar, clique .

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação