Diversão e Arte

Livro lembra bastidores do período em que a UnB foi conduzida por militares

Ex-vice reitor fala sobre os bastidores de um período pouco conhecido da universidade, marcado pela tensão e pela contradição

Severino Francisco
postado em 04/01/2014 07:44
Carro da polícia incendiado pelos estudantes durante invasão dos militares ao Câmpus em 1968: clima pesado

Os períodos da história da UnB mais pesquisados, documentados e conhecidos são o do esplendor inicial do projeto de Darcy Ribeiro e o das invasões que o câmpus sofreu na virada dos anos 1960. A década de 1970 permanece sob as sombras. Para o professor Marco Antonio Rodrigues Dias, esse foi, sobretudo, um tempo de contradições. A repressão militar apertou o cerco sob o comando do capitão de mar e guerra José Carlos Azevedo. No entanto, havia um acordo tácito: o próprio governo tinha interesse em manter um padrão mínimo de qualidade e de credibilidade. Era possível contratar professores competentes, desde que eles não ultrapassem certos limites políticos. Essa circunstância propiciou o florescimento de projetos acadêmicos importantes nas áreas da comunicação, da economia, da geologia, da medicina e da música, entre outros. Ao mesmo tempo, os estudantes se articularam em movimentos de resistência que atiçaram os ânimos do aparato repressivo e criaram um ambiente de tensão.

Em
UnB e comunicação nos anos 1970: Acordo tácito: repressão e credibilidade pública (Ed. UnB), Marco Antonio dá um depoimento sobre esse tempo conturbado da história da universidade. Ele fala de um ponto de vista privilegiado, pois, atuou na condição de professor, chefe do Departamento de Comunicação, decano de extensão e vice-reitor. Marco Antonio foi diretor da Divisão do Ensino Superior da Unesco, de 1981 a 1999. Nesta entrevista, ele evoca os bastidores da negociações políticas, o jogo das forças repressivas, o movimento de resistência dos estudantes e os projetos acadêmicos relevantes.

Como eram os bastidores da história da UnB na década de 1970?
É uma parte da história que ficou um pouco esquecida. As pessoas conhecem mais a invasão militar em 1964 e as ocupações violentas de 1968 . Em 1968, a situação chegou ao ponto de se cogitar o fechamento da UnB. No entanto, o próprio governo do regime militar avaliou que isso não era possível. Magalhães Pinto era ministro das Relações Exteriores. Sabia que era inviável abrir mão de uma universidade pública na capital do país. Os diplomatas do Brasil e de outros países não viriam para Brasília se não tivessem instituições para a instrução dos seus filhos.

E como se chegou a uma solução para o impasse?
Augusto Radmaker, ministro da Marinha, durante o governo do presidente Costa e Silva, tirou uma solução do bolso. Segundo ele, havia um oficial da Marinha, competente, inteligente e formado em engenharia civil nos Estados Unidos. Era o capitão de mar e guerra José Carlos Azevedo, que tinha acabado de prestar serviços a uma instituição no Rio de Janeiro. Ele chegou na condição de professor visitante, mas veio para tomar conta de tudo.

E de que maneira ele passou a tomar conta de tudo?
Durante a invasão militar de 1968, um estudante quase morreu, os laboratórios foram destruídos e Honestino Guimarães foi preso pela primeira vez, Isso criou um trauma muito grande. Em setembro, os militares escolheram como reitor o professor Caio Benjamin Dias, na tentativa de renovação da universidade. Ele era catedrático da Universidade de Minas Gerais, acreditava nos princípios democráticos e que os militares queriam a democracia.

Marco Antonio Rodrigues DiasMas de que maneira se traduzia essa intenção democrática na gestão da universidade?
Caio mantinha um compromisso com as ideias originais de Darcy Ribeiro para a UnB e tentou trazer pessoas de alto nível. Como conseguir gente qualificada naquela circunstância tão delicada do ponto de vista político? Ele arregimentou bons professores em Minas Gerais e o governo colocou mais recursos, de modo que se tornou atrativo vir para Brasília. Veio gente do Brasil e de várias partes do mundo. Politicamente, a partir de 1968, os movimentos da juventude esquentaram no mundo inteiro.

Quais as consequências para o cotidiano da universidade?

O clima político se deterioriou, as posições se radicalizaram de um lado e de outro. A repressão se tornou cada vez mais violenta. Na época, correu o boato de que Caio teria solicitado a invasão da universidade. O que se sabe é que ele se encontrou com o presidente e entregou a demissão. A invasão ocorreu em 19 de agosto de 1958. Em 20 de setembro, o capitão de mar e guerra José Carlos Azevedo tomou posse como vice-reitor.

E o professor Caio Benjamim conviveu com a situação imposta?
Ela acreditava que era uma concessão, mas a fonte de poder deixou de ser o Caio. No entanto, pouco a pouco, se deu conta de que haviam lhe puxado o tapete. Data desta época o recurso do jubilamento como instrumento político. Caio quis botar um freio e não conseguiu mais. Ele revogou a delegação de poderes que havia concedido a Azevedo, deixando-o apenas com função de exercer pequenas ações administrativas tais como a autorizar a viagem de professores em missões. Mas se estabeleceu um conflito interno em que o elemento fraco era o reitor e o forte o vice-reitor.

E como foi possível realizar projetos interessantes mesmo sob esse cerco obscurantista?
Aconteceu um fenômeno muito interessante. Com o apoio de autoridades do governo, Caio havia tentado montar um esquema que a universidade reestabeleceria a credibilidade acadêmica, ao trazer pessoas de alto nível de todo o mundo. E se fez um acordo tácito. Em princípio, se o professor tinha qualidade, era contratado. Isso só não ocorria em raros casos quando o SNI dava um veto total. O professor tinha liberdade de ação e pesquisas, mas quando ultrapassava certos limites era demitido.

Que projetos ou áreas de destaque poderia citar na UnB dos anos 1970?
Esse foi um período extremamente complexo, mas, inegavelmente, ocorreram coisas positivas. O curso de economia tinha no quadro de professores Edmar Bacha, Lauro Campos, Flavio Versiani, Teresa Ribeiro, Cristovam Buarque e Luis Paulo Rosemberg, todos de nível muito alto. Ocorreram projetos importantes na economia, na medicina, na antropologia e na comunicação. As crises foram superadas uma a uma até 1976, quando me nomearam vice-reitor, durante a gestão de Azevedo.

Qual foi o impacto do processo de abertura comandado pelo General Geisel na universidade?
Em março de 1974, Geisel anunciou a revogação do decreto lei 477 que visava a abertura e o fim da censura. Nomeou como ministro da Educação, Ney Braga, que era de origem militar, mas fez uma carreira politica como liberal no Partido Democrático, que era aliado de Jango. Ele trouxe um grupo de assessores que representavam uma linha de abertura e diálogo. Mas isso não representou a pacificação da universidade.

E por que isso não ocorreu?
Não era do interesse dos grupos da linha dura. E, visivelmente, em 1977, houve manifestações em todo o país. Foi instituído um dia de luta nacional. Na UnB, houve uma manifestação pacífica, Os estudantes reclamavam da qualidade do ensino, do número de vagas e do jubilamento. A base era estritamente acadêmica e não política. Mesmo assim, os estudantes foram expulsos e presos. Os militares os enquadraram na Lei de Segurança Nacional. Mais tarde, o Supremo Tribunal Militar anulou tudo. O que se queria era que os estudantes se manifestassem com mais intensidade para caracterizar um clima de sublevação e provar que a abertura era inviável. Logo, o Azevedo suspendeu e expulsou estudantes.

E como o senhor ficava em uma situação tão delicada quanto essa?
Me manifestei contra, argumentando que contrariava a tendência de abertura democrática do país e a orientação do próprio presidente Ernesto Geisel.

O que foi possível fazer apesar de todos os problemas do período?
O curso de economia tinha projetos sobre o problema habitacional. A medicina criou um programa de atendimento comunitário em Planaltina, apontado como modelo. Foi um período contraditório. Na área da comunicação foi nomeado Quandt de Oliveira, era considerado um técnico muito competente. Foi na gestão dele que o sistema tecnológico de comunicação se desenvolveu de maneira extraordinária. Na universidade, se discutia que a comunicação deveria ser um instrumento de cultura. Ele era uma pessoa correta, se interessou pelo tema e fez declarações defendendo teses consideradas de esquerda. As pesquisas do Departamento de Comunicação influenciaram a definição das políticas públicas para a área. Quandt de Oliveira negou concessões a Rede Globo.

O LIVRO:
UnB e comunicação nos anos 1970 ; Acordo tácito, repressão e credibilidade acadêmica
Marco Antonio Rodrigues Dias
256 páginas/Ed. UnB

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação