Diversão e Arte

Eduardo Coutinho deixa legado marcado por experimentação e pioneirismo

Mestre do documentário no Brasil foi morto a facadas neste domingo (2/2)

Estado de Minas, Bossuet Alvim
postado em 02/02/2014 18:56

Coutinho: ''Todo filme, um pouco, você faz para você, e torce para que passe para os outros''

O último filme de Eduardo Coutinho foi, desde a idealização, um presente do diretor para si. "Exclusivamente para o meu prazer", declarou o cineasta sobre o processo de filmar As canções (2011), em agradecimento a um prêmio conquistado pelo filme. No longa, o diretor reuniu 18 pessoas ; de um total de 42 entrevistados ; que apresentam à câmera suas canções favoritas, interpretando-as como podem e sabem. A única orientação destes anônimos em suas performances são as ligações afetivas que possuem com as faixas. Premiado no Festival do Rio em sua categoria, o filme tornou-se derradeiro na trajetória do cineasta, assassinado neste domingo, 2, no Rio de Janeiro.

Singela em roteiro e produção, a última investigação de Coutinho coroa com lirismo uma extensa filmografia de realidades cruas, como a relatada por habitantes de um povoado no sertão paraibano em O fim e o princípio (2005) ou aquela refletida no discurso político de operários metalúrgicos em Peões (2004). Mas o trabalho com as músicas não seria, segundo o próprio, seu único projeto de realização pessoal. "Todo filme, um pouco, você faz para você, e torce para que passe aos outros", afirmou o diretor no agradecimento pelo troféu de ;As canções;.

Nascido há quase 81 anos em São Paulo, Eduardo Coutinho estudou cinema no tradicional Institut des Hautes Études Cinématographiques, em Paris, que tem entre seus alunos ilustres o francês Louis Malle, o britânico Christopher Miles e o brasileiro Nelson Pereira dos Santos. De volta ao Brasil, tornou-se adepto do Cinema Novo à mesma época em que envolveu-se com a ala cultural da União Nacional dos Estudantes. Em Belo Horizonte, pela UNE, dirigiu a montagem da peça ;Mutirão em nosso sol;, em colaboração com o dramaturgo Chico de Assis, durante o Congresso dos Trabalhadores Agrícolas, em 1962.

Foi nesta época que o Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE iniciou a produção de ;Cabra marcado para morrer;, um longa de ficção baseado na história de João Pedro Teixeira, líder das Ligas Camponesas em Pernambuco. Escolhido para dirigir o projeto, Eduardo Coutinho chegou a coordenar 15 dias de filmagens com o elenco, formado por camponeses locais.

A eclosão do Golpe Militar de 1964 levou à prisão de parte da equipe ; formada por militantes do movimento estudantil ; sob a suspeita de práticas comunistas. Com a intervenção dos militares e o reforço da censura, o projeto do longa foi adiado por 20 anos. Com os negativos resgatados em 1981, Coutinho refez contato com os personagens da história real e criou um relato sobre a opressão nos tempos da ditadura. Após a conclusão, em 1984, ;Cabra marcado para morrer; tornou-se obra-prima do artista, premiada em diversas mostras nacionais, latino-americanas e no Festival de Berlim.

Investigativo e experimental

Na década de 1970, Coutinho assinou roteiros de ficções como ;Dona Flor e seus dois maridos; (1976), de Bruno Barreto, ao mesmo tempo em que mantinha em exercício a veia documentarista através do programa ;Globo repórter; (TV Globo), onde assinou produções ousadas de jornalismo investigativo por duas décadas. Após dirigir a comédia ;O homem que comprou o mundo; (1968) e o drama ;Faustão; (1970), baseado na obra de Shakespeare, o cineasta passou a dedicar-se quase exclusivamente ao relato de histórias reais.

Relato e popularidade

Em 45 anos de atividade, Eduardo Coutinho assinou produções que são referência do gênero no Brasil, como ;O fio da memória; (1991), ;Boca de lixo; (1993) e ;Os romeiros de Padre Cícero; (1994). A explosão de popularidade viria com o lançamento de três filmes que venceram a resistência do público geral em relação a documentários. ;Santo forte; (1999), que lida com o ecletismo religioso em bairros e comunidades de periferia, levou mais de 18 mil espectadores aos cinemas. O longa foi seguido de ;Babilônia 2000; (2000), um olhar sobre os preparativos de moradores para a festa de ano-novo em um morro do Rio de Janeiro, assistido por cerca de 15 mil pessoas.

O interesse despertado por ambos resultou na procura significativa por ;Edifício Master; (2002), que reúne entrevistas com moradores de um condomínio residencial em Copacabana. Marcado pelo contraste de comportamentos e personalidades que dividem um espaço comum, o longa teve bilheteria em mais de 86 mil espectadores. Vencedor do Kikito de Ouro de Melhor Documentário no Festival de Gramado, o filme aproximou a obra de Coutinho do reconhecimento pela classe-média, que se via refletida na fala de seus personagens.

Reflexão da linguagem

Explorador de caminhos inusitados em cenários comuns, o diretor se aprofundou na reflexão sobre a dualidade do documentário em trabalhos mais recentes. ;Jogo de cena; (2007), coloca atores famosos como protagonistas de relatos oferecidos por pessoas desconhecidas.

;Moscou; (2009), seu penúltimo filme, acompanha a preparação de atores nos bastidores de uma peça de Tchekhov. Com linguagem próxima ao improviso, a obra é marcada pela busca de Coutinho pela isenção de intervenção. "Creio que a principal virtude de um documentarista é a de estar aberto ao outro, a ponto de passar a impressão, aliás verdadeira, de que o interlocutor, em última análise, sempre tem razão. Ou suas razões", escreveu o diretor em 1992 para o catálogo do Festival Cinéma du Réel.

No ano passado, quando completou 80 anos, Eduardo Coutinho foi homenageado pela Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo. A obra do artista também foi premiada com um Kikito de Cristal no Festival de Gramado, em 2007.

Assista o trailer de ;As canções;, o último trabalho lançado por Eduardo Coutinho:
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