Diversão e Arte

André Mehmari conta como mantém o ritmo de criação mesmo com obstáculos

O artista está entre os principais produtores de música instrumental do país

Nahima Maciel
postado em 04/02/2014 08:36
André Mehmari é considerado um dos maiores produtores da música instrumental brasileira
Foram necessários alguns anos, muitas viagens e, sobretudo, horas de estudo para o pianista André Mehmari, 36 anos, transformar a sala de casa, na Serra da Cantareira (SP), em estúdio. De tão bem equipado e frequentado, o lugar é praticamente um santuário. ;Minha igreja;, define Mehmari. Graças ao espaço sagrado, o instrumentista e compositor está entre os mais produtivos do país. Para ele, não tem tempo ruim, condição de gravadora, contrato restritivo ou compromisso capaz de interferir na criatividade e no trabalho. E assim, ele consegue gravar uma quantidade impressionante de discos com uma igualmente quantidade impressionante de convidados do alto escalão da música brasileira.



De lá, saíram Quinteto Angelus, Triz, parte de Canteiro, o primeiro disco de canções do compositor, e Miramar, parceria com o clarinetista italiano Gabriele Mirabassi, que rendeu, também, o primeiro DVD produzido pelo próprio Mehmari no estúdio caseiro. ;Fico muito contente de ter essa autonomia que me dá a liberdade de escapar da ditadura do que é conveniente aos meios mercadológicos. E tenho um núcleo de produção em casa que não deixa a desejar para nenhuma grande gravadora. Só que a gente faz música boa;, repara. A leva recente tem mais: o registro ao vivo do encontro com o também pianista Mario Laginha no Ibirapuera e um DVD de uma apresentação ao lado da Orquestra à base de sopro de Curitiba, ainda por ser lançado. Este ano, ele também coloca no mercado um disco com músicas de Ernesto Nazareth, na qual incluiu e concluiu uma peça inacabada, e uma parceria com o baterista francês François Morin, gravada em estúdio no Japão.

Há duas semanas, durante o Curso de Verão da Escola de Música de Brasília (Civebra), quando o compositor espalhou os discos sobre um tampo de um velho piano de armário encostado em uma parede de uma sala quente da escola, não precisou de 10 minutos para vender todos os exemplares. Os levou a pedido de alunos e professores. Vendeu quase tudo para os aprendizes que acompanhavam sua masterclass durante as duas semanas do evento: pianistas de várias idades que vieram do Amapá, Maranhão, Rio de Janeiro e São Paulo só para ter aulas com Mehmari. Compreensível, já que o fluminense de 36 anos é hoje o mais importante pianista da nova geração da música instrumental brasileira.
Ouça um trecho do disco Quinteto Angelus:
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Entrevista com André Mehmari

Sobre suas aulas no Curso de Verão (Civebra), o que procura passar para o aluno em tão pouco tempo?

É pouco tempo e é uma turma bastante heterogênea, então para mim é um desafio arrumar um jeito de conduzir a aula de modo que consiga ajudar todo mundo. Tento fazer todo mundo tocar naquele período diário de quatro horas, independente do grau de intimidade que a pessoa tem com o piano.

O improviso é parte importante de sua prática pianística. Como encara essa parte da música?

Acho que existe um certo fascínio tanto para quem faz o improviso quanto para quem escuta. Improviso é uma atividade que está presente na história da música desde sempre, os grandes compositores eram todos grandes improvisadores, faziam improviso nos seus concertos. Essa é uma tradição que aos poucos foi sumindo da sala de concertos da música clássica na medida em que o papel do compositor e do intérprete foram ficando mais claros em figuras mais distintas. E hoje em dia sinto que existe uma procura pelo improviso. O interesse é justamente e criar uma música viva. Tenho feito concertos no mundo inteiro em que peço sugestões de temas à plateia e improviso em cima desse temas criando música em tempo real. Para mim, é muito estimulante porque sou um compositor que toca e estou compondo ali em tempo real. E quem está escutando acompanha aquilo como uma partida de futebol, uma coisa viva que está sendo feita naquele momento. Quando as duas pessoas estão no mesmo espaço, no mesmo tempo, existe uma mágica que é diferente: elas estão unidas pelo fio tênue da criação musical, que é uma coisa que pode haver um deslize e existem deslizes que você tem que aproveitar de maneira musical.

Qual o equilíbrio entre talento, criatividade e trabalho no improviso?

É a tal da inspiração e da transpiração. Existe todo um trabalho de base para viabilizar um bom improviso. Se você sair sem esse estofo, sem essa base sólida técnica, o improviso não voa, ele não pode acontecer. É o paradoxo da liberdade: para você ser livre, tem que ter a técnica. O que acontece é que no Brasil não existe respeito pelo piano como instrumento, como tradição, embora tenhamos pianistas geniais na história da música brasileira ; Guiomar Novaes, Nelson Freire, Luiz Eça, Egberto Guismotni, Ernesto Nazareth. O piano é maltratado no Brasil e a maioria dos alunos não tem e estuda em teclados eletrônicos.

Tem um problema em relação ao instrumento no mundo inteiro? A Pleyel fechou a fábrica, ninguém consegue concorrer com os pianos chineses, cuja qualidade é questionável. Qual o futuro do piano diante disso?

Tem uma coisa boa nessa coisa de massa. Eu, por exemplo, comecei a tocar violino e viola em instrumentos chineses, baratinhos. Essa massificação está generalizada. É um cenário atual que não se limita ao piano. Mas acho que os pianos premium e ultratops nunca vão deixar de existir. E vão ser sempre caríssimos e raramente acessíveis aos instrumentistas, por isso é bom que os teatros invistam.

Você falou que acha a sistematização terrível. E você é um pianista que, de certa forma, renova a tradição da MPB. Isso é um compromisso?

Faz parte da minha natureza musical desde menino, de improvisador, de inquietude musical, de ouvir tudo com o ouvido aberto, sem preconceito, respeitando tradições diferentes que às vezes parecem ser tão distantes mas que, quando você tem o coração e o ouvido abertos, você encontra pontos entre elas. Como entre a música barroca e a MPB. Quando digo que não gosto da sistematização, não quer dizer que não gosto do método, é diferente. O que não gosto é dos reducionismos que existem. "Ah, música popular é aquela do barzinho" ou "qual a levada que você faz para tocar um samba?". Se você vai estudar a fundo, você vai ver que não consegue reduzir aquilo a uma coisa mínima, pelo contrário, aquilo se explode em mil cores e mil nuances. É isso que tento passar para os alunos das minhas oficinas, essa inquietude. Dou uma apavorada na turma: em vez de colocar um trilhozinho, sempre faço questão de jogar aquela semente de inquietude nos meninos para que possam procurar a voz deles, quando começam a cair em formatos e supostos caminhos práticos.

Isso é difícil quando se é jovem?

É difícil, mas ao mesmo tempo é a época na qual você tem que não se entregar a um comodismo. Acho que não combina com a própria idade.

Você percebeu isso rapidamente quando começou?

Muito, sim. Até essa coisa da fronteira da música popular. Quando eu tinha 13 anos, me perguntavam: "e aí, o que você vai fazer, o que vai seguir?". Eu falava: "minha música é essa, ela é desse jeito, é o que eu gosto". É da minha natureza, que reflete o tipo de formação que tive em casa, o tipo de ambiente musical que tive em casa, totalmente sem julgamentos morais, do que é alto ou do que é baixo. Na verdade, desenvolvi um senso crítico muito apurado muito cedo porque estive exposto a todo tipo de música. E tive a chance, também, de me profissionalizar muito cedo. Com 11 anos, eu tocava em bares.

Você faz questão de sempre dizer que só toca com quem gosta. Que diferença isso faz para a tua música?

Toda diferença. Faço isso desde sempre. Todos os meus parceiros são grandes amigos, pessoas com quem tenho laços afetivos verdadeiros e o jeito de fazer música passa por aí também. É um jeito brasileiro de sempre levar as coisas para o lado pessoal. Às vezes, em outros lugares ou outras culturas há um jeito mais profissional de ver as parcerias, separando muito as coisas. Quando você vai improvisar com outras pessoas, é como dançar num salão: você tem que ter total cumplicidade porque o outro vai dar um salto mortal acreditando que você vai segurá-lo, que o parceiro vai estar lá naquele momento em qualquer condição. Musicalmente, esse tipo de cumplicidade é muito forte. E eu tenho o privilégio de ter parcerias muito valiosas e duradouras.

Qual o lugar da música instrumental hoje no Brasil?

Se já era gueto, sinto que hoje a internet é um canal para esse gueto se unir. Mas esbarra na questão da educação. Sinto que é preciso preparar a plateia para ouvir a música instrumental e a boa música vocal, a canção, tudo.

Mesmo sendo um povo musical?

Eu gostaria que houvesse um acesso mais democrático. De fato, pela própria mistura da sua formação étnica e outros aspectos que todos sabemos muito bem, o país realmente é uma potência musical. Mas fico abismado com a diferença de tratamento que tem um artista aqui e fora. Acabei de vir de uma turnê japonesa e vi muito claramente a forma como se respeita os artistas. Não é bajulação, não é isso. É profissional. É uma postura de respeito a um sujeito que tem um papel importante na sociedade, que não é música de fundo, um bobo da corte. A cultura é a identidade do país, do lugar, e garante integridade territorial, mais do que o exército. Então é o que eu digo: acho que deve se bater nessa tecla de que o acesso a todo tipo de expressão artística seja realmente democrática e não seja massificado, pautado por questões mercadológicas. Um evento como esse aqui (Civebra) é um oásis, a forma como as pessoas absorvem a música. Coisas como essas deveriam ser mais presentes, mais amplamente difundidas.
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