postado em 17/02/2014 08:57
A imagem que se tem de Dom Pedro II é a de um homem envelhecido. Morto antes dos 70 anos de idade, o último imperador do Brasil ficou na memória nacional como um homem de fartas barbas brancas e um olhar frio. Isso é fruto da construção da personalidade do monarca, destinado a subir ao trono ainda cedo. A historiadora Lilia Moritz Schwarcz, no livro As barbas do imperador, vencedor do Prêmio Jabuti de 1999, mostra como foi a formação do governante e explica um pouco do país à época e a dissimulação da monarquia em retratar a imagem da nação e de seu mais longínquo mandatário. Uma adaptação para os quadrinhos, com ilustrações do renomado Spacca e textos da própria Lilia, chega agora ao mercado.A colaboração entre escritora e ilustrador ; que, juntos, desenvolveram o best-seller D. João carioca ; vai desde o nascimento de Pedro de Alcântara, passa pela partida de D. Pedro I rumo a Portugal, pelo rito de coroação como D. Pedro II aos 7 anos de idade, pela Guerra do Paraguai e culmina na morte do derradeiro imperador do país. Por meio de desenhos inspirados em pinturas do francês Jean-Baptiste Debret e de outros artistas que retrataram o Brasil à época, e textos adequados à linguagem em quadros, Spacca e Lilia mostram como os símbolos foram utilizados por D. Pedro II para manter o poder. Afinal, como diz a própria Lilia, os quadrinhos ;são um bom meio para explicar os fatos de maneira caricatural;.
Nessa representação, fica claro como o conceito de ;monarca moderno; está atrelado ao uso da fotografia. Enquanto outros reis e imperadores usavam a pintura a óleo no retrato deles mesmos, D. Pedro II foi um entusiasta de primeira viagem dos daguerreótipos, construindo o que Lilia Moritz Schwarcz define como um ;circuito fechado;. ;O próprio D. Pedro II era fotógrafo. Os profissionais que vinham de fora eram financiados e patrocinados pelo Estado, portanto as fotografias que retratam o Brasil da época são uma construção da monarquia;, explica. ;É por isso que, em um país em que 75% da população era escrava, os retratos eram de uma nação feliz, na qual os escravos eram passivos, o que é mentira;, completa.
Confira entrevista com Lilia Moritz Schwarcz
Sua parceria com o Spacca, ilustrador, rendeu D. João Carioca. Como nasceu a dupla Spacca-Lilia Moritz Scharwcz e como foi a ideia de transpor seu livro aos quadrinhos?
Eu conheço o Spacca há muito tempo, acompanho o trabalho dele. Já tinha com os quadrinhos na Quadrinhos na Cia. (ramificação da Companhia das Letras, editora da qual Lilia e o marido, Luiz, são donos) e, quando veio o ano de 2007, tive a ideia de escrever D. João Carioca. O Spacca é, além de ilustrador, um grande pesquisador, por isso pensei nele. Com o sucesso que foi, o Spacca teve a ideia de continuar com a parceria.
Quais os principais obstáculos em se pesquisar a monarquia brasileira? Como a abundância de fotografias ajuda nisso?
As barbas do imperador surgiu de uma tese de docência. Tirei os capítulos mais teóricos e virou o sucesso que foi. Meu argumento é que os reis foram grandes marqueteiros. D. Pedro II, enquanto os outros se utilizaram do óleo, utilizou a foto, com a qual ele criou um circuito fechado. Ele era fotógrafo e financiava os fotógrafos que vinham ao Brasil. Todos eram patrocinados pelo imperador nessa grande construção da imagem da realeza. Nas imagens, construiu-se um país tropical sem escravos, quando o Brasil tinha 75% de sua população na condição de escravos, que, quando eram representados, apareciam escravos passivos, aceitando a própria condição. Ele construiu uma caricatura do império, e os quadrinhos são um bom meio para se representar caricaturas.
Na obra, é dito que devemos voltar ao passado para compreendermos o presente. O livro retrata D. Pedro II como um homem reservado, seguindo as regras de etiqueta de não demonstrar os sentimentos em público. Esse costume continua no Brasil? Em sua visão, o que mudou mais ao longo dos anos?
A partir dos anos 1970, com as reivindicações dos direitos civis pelos movimentos sociais, o Brasil começou a mudar. Pelo menos no processo institucional, a nação se mostra segura como república. Mas ainda somos herdeiros do fato de ser o último país a abolir a escravidão. Esse culto pela figura do monarca, tudo que faz sucesso vira rei ; é só ver os casos de Pelé e Roberto Carlos. No Carnaval, há o desfile de reis. O endeusamento da monarquia continua.
Ainda nesse caminho de comparações entre ontem e do hoje, são citadas as típicas frases "trabalho de preto", "cabelo bom", entre outras definições preconceituosas. Qual o espaço do negro hoje no Brasil? E do indígena, tão romantizado pelo Império? Como isso mudou (ou não) ao longo dos anos?
Não dá para representá-los tão passivamente como na época. No grande encontro entre brancos e indígenas, estes tiveram a população reduzida em mais de 75%. Hoje, têm muito mais reivindicações. O mesmo em relação aos negros, há uma historiografia em relação à escravidão muito rigorosa: como eles agiam, reagiam, fugiam, não eram passivos à condição inferior. Desde os anos 1970, o Brasil evolui nesse sentido, mas continuamos sendo um país que discrimina.
Originalmente, o que a levou a escrever o livro, no final dos anos 1990? Foi o interesse de historiadora pela figura de D. Pedro II? Da situação do Brasil à época? Como foi feita a pesquisa?
Foi em 1996. Eu queria mostrar como era importante não apenas a construção política, mas também a construção simbólica para a manutenção poder. E como a monarquia utilizava isso. A minha segunda questão era entender um pouco de como isso se mantinha na cabeça das pessoas, já que, em um plebiscito realizado pouco antes (em 21 de abril de 1993) sobre qual forma de governo a população preferia, a monarquia obteve 17% na enquete.
No livro, fica claro o distanciamento entre o Brasil e as nações mais desenvolvidas à época. O que mudou na percepção de estrangeiros quanto ao nosso país?
Dou aula fora do Brasil desde 2006. Passei por EUA, França, Alemanha, Holanda e Inglaterra. No começo, era essa questão mais exótica: capoeira, candomblé e carnaval. Isso mudou um tanto depois da crise econômica mundial. A inserção do país é outra, a importância também. Por outro lado, eles veem muito mais os problemas daqui. O Brasil é ainda muito o ;outro;, mas a discussão está mudando. Vamos ver o que vem agora nesses anos de eventos esportivos;
D. Pedro II era loiro de olhos azuis. Qual a influência dele para, até hoje, tais traços serem bem vistos em nossa sociedade, tão miscigenada e ; ao mesmo tempo ; eurocentrista?
Eu acho que tem muita. É a ideia do governante ser alguém diferente de você. Além de loiro dos olhos azuis, ele era alto e de família europeia. E ainda erudito e poliglota. Ele nasceu rei. A entrada do PT (Partido dos Trabalhadores) no cenário mudou essa perspectiva de o governante ser alguém bem diferente. Ainda assim, há pouco tempo fizeram uma pesquisa entre os nomes mais populares do Brasil, e D. Pedro II continuava a figurar lá.
As barbas do imperador: D. Pedro II, a história de um monarca em quadrinhos
De Lilia Moritz Scharcwz e Spacca. Quadrinhos na Cia, 144 páginas. Preço sugerido: R$ 49
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