A voz continua meiga. Mas Fernanda Takai, uma veterana do pop rock nacional, não cansa de se reinventar. Quando lançou seu primeiro álbum solo, Onde brilhem os olhos seus, em 2007, Takai estava certa que exercitaria apenas o lado de intérprete. Deixaria suas composições para o Pato Fu. Passados quase sete anos da decisão, a amapaense radicada em Belo Horizonte cruza a linha imaginária estabelecida anteriormente e lança Na medida do impossível, quarto disco solo. As 13 faixas surpreendem pelas parcerias e regravações inusitadas (Pitty, Marina Lima, Reginaldo Rossi, padre Fábio de Melo e George Michael convivem harmoniosamente), pela sonoridade e pelas canções assinadas por ela. Apesar de produzir o álbum, há menos interferência de John Ulhoa ; companheiro de longa data ; nas composições, que tornam o álbum ainda mais autoral.
Com a baiana Pitty, Fernanda Takai escreveu Seu tipo. Partida é a música em que ela se declara mais autobiográfica. Mesmo quando não assina a canção, a escolha do repertório de Na medida do impossível passa longe do acaso. Mon Amor, meu bem, ma femme é um exemplo: eternizada na voz do ícone brega Reginaldo Rossi, faz parte da memória musical de Takai. ;Não a vejo como uma música brega, por isso, fizemos um arranjo fino e chique. É um repertório muito popular, que representa a minha vida como ouvinte. Eu escutava bastante quando morava na Bahia, sempre ligada em um rádio de pilha;, comenta. Seria um aceno com a música brega, tão forte no Norte, seu estado de origem? Fernanda diz que sim: está atenta aos sons que vêm de todos os cantos do país.
As regravações continuam com Doce companhia, versão de música homônima de Julieta Venegas que abre o disco, Como dizia o mestre, de Benito de Paula e A pobreza (Paixão proibida), de Renato Barros. Surpreende a companhia do padre Fábio de Melo em Amar como Jesus me amou, do Padre Zezinho. O arranjo do japonês Toshiyki Yasuda tira o tom solene da música religiosa. A parceria levantou algumas críticas quando anunciada em redes sociais. Fernanda esclarece: deve muito de sua formação musical à escola católica, onde passou parte de sua infância. ;Independentemente do estilo, quando escolho cantar uma música, ela vem com uma reflexão da minha vida ou uma mensagem positiva;, explica. Completando as parceiras, Marina Lima a acompanha em Quase desatento, do poeta Climério Ferreira, e Marcelo Bonfá se faz presente com De um jeito ou de outro, onde Fernanda revive os anos 1980.
Minidocumentário
Enquanto os shows de lançamento de Na medida do impossível não vêm (a turnê ocorrerá após a Copa do Mundo, em julho), Takai dividirá seu tempo entre o novo disco do Pato Fu e o projeto de um novo livro, ainda guardado em segredo.
Entrevista com Fernanda Takai
Em que Na medida do impossível se destaca de seus demais trabalhos?
Nesse álbum, cruzei uma linha imaginária que tinha proposto para mim anteriormente, que era não gravar músicas minhas nos meus discos solos. Eu encarava minha carreira solo como intérprete, mas em Na medida do impossível, convidei algumas pessoas e fiz parcerias em que me permiti tudo que queria. De repente, me deu vontade de gravar composições minhas e chamar essas pessoas que convidei para tocar comigo. É um disco de celebração de gente que eu conheci durante minha carreira, são pessoas que acho interessante e considero fundamentais na música brasileira. Todos eles aceitaram prontamente o meu convite, o que me deixou muito surpresa, pois era um trabalho ousado.
Há também algumas versões. Um exemplo é a Mon amour, meu bem, ma femme, eternizada pelo ícone brega Reginaldo Rossi, que você gravou com Zélia Dunkan. Isso evidencia a relação com sua terra natal, o Norte, conhecido pela força que o movimento exerce por lá?
Eu tinha cantado essa música com a Zélia em 2011 no Carnaval de Recife, no Marco Zero. A resposta do público foi delirante. É uma pena que ele não ouviu essa nova versão, porque a gravei complemente diferente da que cantamos ao vivo. Não a vejo como uma música brega, por isso, fizemos um arranjo fino e chique. É um repertório muito popular que representa a minha vida como ouvinte. Eu escutava bastante quando morei na Bahia, sempre ligada em um rádio de pilha. Mesmo que tenha uma banda de pop rock, essas lembranças não se apagam. Me faz bem lembrar disso e mostrar para as pessoas que eu escuto esse estilo musical. Não é nada anormal eu gravar uma música do Reginaldo Rossi ou do George Michael, porque sempre admirei esses artistas. Tenho acompanhado o trabalho de músicos do Norte. Alias, gosto de ficar atenta a tudo que acontece no Brasil. Quando viajo, e uma banda local abre uma apresentação minha ou do Pato Fu, assisto ao show e presto muita atenção. Tem muita coisa boa vindo de Belém, que mescla a velha e a nova geração. Ainda bem que existe essa diversidade em nosso país!
O álbum tem uma sonoridade bem suave. Em entrevista, você afirmou que é um disco para ;mulherzinha;. Como você entende a mulher contemporânea?
Durante algum tempo, as mulheres procuraram fugir do papel delicado. Queriam se mostrar fortes e cheias de fibra. Mas, também é papel delas ter uma visão mais suave, administrar tudo de uma maneira mais cuidadosa. Não acho nenhum demérito ser frágil e ao mesmo tempo dar conta de um monte de coisas. O meu disco, por exemplo, mescla baladas pop, momentos de contemplação e outros quase cinematográficos. Ou seja, ela representa os humores femininos e como somos suscetíveis a pequenas alterações diárias. O tom de voz ou um bom dia recebido pode mudar o nosso dia por completo. Gosto de poder observar o mundo e tentar colaborar para que o ele seja melhor e mais tranquilo.
Você parece muito hiperativa, apesar da voz doce e delicada. Como é trabalhar em um mundo ainda dominado por homens? O que mudou nesses 20 anos de carreira?
As mulheres vão ocupando espaços, isso é um fato. Mas o que mais gostei foi de ver homens mais maleáveis, que olham de outro jeito para o sexo feminino. Não basta a gente lutar e dar murro na ponta de faca. Quem está segurando a faca é que precisa largar o cabo e ceder. A batalha de todo mundo -- e isso independe de ser homem ou mulher -- é por respeito, ser ouvido, ter dignidade e condição de poder fazer planos e realizá-los. Gostaria muito que o mundo andasse nessa direção. Em nosso país, por exemplo, estamos cuidando de outras coisas que precisam ser sanadas. Sou mãe de uma menina (Nina, de 10 anos) e toda criança, para mim, deveria estudar em escola integral. Não é nenhuma prisão como as pessoas falam, é um momento de aprendizado. Poder lidar com outras vertentes que não só a sala de aula, como artes e música, é um privilégio para os nossos alunos. Escola e família são coisas fundamentais e o Brasil ainda está engatinhando nesse caminho. Precisamos avançar nesses pontos, mas é uma questão de tempo. Nesses 42 anos, acho que o país melhorou. Faço shows tanto para teatros sofisticados quanto praças do interior do país. Em pequenas cidades, mesmo muito pobres, as pessoas vêm falar conosco sobre cultura, o que, teoricamente, seria supérfluo para elas. A arte faz tão bem ao ser humano, ver essas pessoas se identificando com ela é algo maravilhoso. Quando alguém do interior vê meu show e elogia a apresentação, é como se elas tivessem sido transportadas para outra possibilidade de mundo. Com a turnê de Música de brinquedo, isso aconteceu muito. Conseguimos tocar todos de alguma forma, de crianças de colo a senhoras de 70 anos.
O disco trás uma parceria com o padre Fábio de Melo, na música Amar como Jesus me amou, do Padre Zezinho. Você é muito religiosa?
Essa música foi tocada na época da minha primeira comunhão, quando tinha oito anos. E eles falavam que quem tocasse qualquer instrumento poderia levar para a igreja. Ela era muito conhecida. Sou de família católica, mas tenho uma avó japonesa e parte da minha família é budista. Não frequento a igreja, mas gosto muito de músicas católicas. Até gravei um EP para um desfile do estilista mineiro Ronaldo Fraga com músicas da igreja. Independentemente do estilo, quando escolho cantar uma música elas vêm com uma reflexão da minha vida ou uma mensagem positiva. Até hoje escuto Amar como Jesus me amou, é uma presença forte na minha memória musical. Quando conheci o padre Fábio de Melo, em um programa de entrevistas, começamos a nos falar por e-mail e senti que era o momento -- o convidei para cantar comigo. Se não fosse ele, talvez nenhum outro padre fosse gostar do arranjo que ela ganhou, com efeito de jogos eletrônicos feito por Toshiyki Yasuda. É moderno, desconstrói aquele tom solene, mas tem um arranjo muito particular.
Quanto tempo demorou o processo de gravação do novo álbum?
Ele foi criado de setembro a dezembro, entre gravação, mixagem e finalização. Do começo do ano até a data de lançamento, fui cuidando da capa e de todo o resto. A capa, aliás, foi um trabalho à parte. Foi algo tão complexo que iremos lançar um minidocumentário destacando a produção dela, pois a imagem tridimensional foi criada a mão e é um reflexo das camadas que o disco tem. Ela é inspirada em um registro feito em 1885 pelo fotógrafo japonês Kusakabe Kimbei. Parece uma montagem, mas também fizemos um cenário com objetos reais. Deu trabalho, como o disco também deu.
Das canções compostas por você, alguma é autobiográfica?
As músicas que eu tinha escrito e gravado no Pato Fu eram sempre minhas e do John. Só o fato dele não ser parceiro nesse novo disco já mostra uma grande diferença. É como se passasse um filtro no que é meu papel no Patu Fu e meu papel como artista solo. Na banda, eu canto mais do que escrevo e o assumo a culpa pelo lado mais pop. Isso fica mais claro no meu disco solo. Mesmo que eu invente uma história, como faço quando escrevo contos e crônicas, o que dispara uma canção é um sentimento meu, algo que aconteceu comigo ou que eu vi de muito perto. A música que tem mais essa caraterística é Partida.
Das participações especiais no CD, alguma você pretende levar para shows?
Vai depender muito da agenda de cada um dos colaboradores. Acredito que alguns deles estejam muito interessados, porque foi um encontro muito bacana. Assim que começarem os shows, veremos se conseguimos essa convergência de agendas, pelo menos em cada show realizado em capitais. Seria incrível ter um desses artistas no palco comigo.
Esse ano, você fez uma participação no álbum Vista pro mar (na música Okinawa), do cantor capixaba Silva. Além dele, existe outro artista da cena atual que você admira?
O Silva é maravilhoso e gosto muito do Leo Cavalcanti também. São dois artistas novos que considero completos. Eles compõem, tocam e produzem as próprias músicas em casa, que resultam em trabalhos muito consistentes.
Com o lançamento do álbum, pretende se dedicar novamente a literatura, quem sabe até se aventurando com um novo romance? (Fernanda é autora do livro infantil A gueixa e o panda-vermelho e as obras de contos e crônicas, Nunca subestime uma mulherzinha e A mulher que não queria acreditar)
Quando tinha a minha coluna semanal no jornal Estado de Minas, era algo que necessitava organização e um bom repertório de boas ideias. Abandonei a coluna para me dedicar mais à música e a compor. Mas, tenho um projeto literário engatilhado. Não é um romance, será algo diferente do que já fiz, mas não posso adiantar muito. Só posso pedir que aguardem até o ano que vem...
Ouça Seu tipo- Fernanda Takai & Pitty Leone
[VIDEO1]
Faixa a faixa
Doce companhia (Dulce compañia) ; Julieta Venegas, versão de Fernanda Takai
Como dizia o mestre ; Benito Di Paula
De um jeito ou de outro ; Fernanda Takai e Marcelo Bonfá
A pobreza (Paixão proibida) ; Renato Barros
Seu tipo ; Fernanda Takai e Pitty
You and me and the bright blue sky ; Fernanda Takai e Charles Di Pinto
Mon amour, meu bem, ma femme ; Cleide (com participação de Zélia Duncan)
Quase desatento ; Fernanda Takai, Marina Lima e Climério Ferreira
Amar como Jesus amou ; Padre Zezinho (com participação do padre Fábio de Melo)
Liz ; Robson e César de Merces
Partida ; Fernanda Takai
Pra curar essa dor (Heal the pain) ; George Michael, versão de John Ulhoa e participação de Samuel Rosa)
Depois que o sol brilhar (Mary)