Mesmo que algumas centenas de quilômetros os separem, o capixaba Silva e o paulista Leo Cavalcanti têm mais em comum do que se imagina. Os dois são multi-instrumentistas, compõem e produzem as próprias músicas. Ambos estão imersos nesse universo desde a infância: Silva é filho de uma professora de música e Leo Cavalcanti é herdeiro do cantor e compositor Péricles Cavalcanti. Após elogiadas estreias em 2011 e 2012, respectivamente, Silva apresenta o novo disco, Vista pro mar, no mesmo mês em que Leo surge com o segundo trabalho, Despertador.
As diferenças começam na hora de encarar a temida síndrome do segundo disco. Silva, diante da excelente repercussão de Claridão, passou por momentos de crise. ;O processo criativo é angustiante. Eu queria que meu segundo disco fosse uma continuidade, mas, ao mesmo tempo, que não se repetisse. Foi difícil achar esse meio-termo;, assume o cantor. O primeiro álbum foi inteiramente gravado por ele em casa, no Espírito Santo. Ele também assinava todas as composições.
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Já Vista pro mar nasceu em parceria com o irmão mais velho do cantor, Lucas. O disco é mais suave e tem uma sonoridade menos eletrônica, como ocorria em algumas baladas de Claridão ; incluindo a excelente A visita, que projetou Silva nacionalmente. Vista pro mar é enxuto, e isso fica evidente na escolha das parceiras. Há somente uma participação especial, na faixa Okinawa, cantada com Fernanda Takai. As composições pertencem a Silva e ao irmão.
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Entrevista com Silva
O que muda de Claridão, lançado em 2012, para Vista pro mar?
Sempre gosto de tentar coisas diferentes, mas o trabalho precisa ter continuidade. No primeiro disco uso sintetizadores, dessa vez, optei por algumas camadas mais leves, não há faixas tumultuadas ou com elementos eletrônicos como foi o primeiro. Dei uma "limpada", não há milhares de instrumentos e coisas acontecendo. Isso foi um amadurecimento musical. Estou buscando meu som e esse processo é longo. Não cheguei aonde quero. Há coisas no primeiro álbum que eu adorava e outras que não queria investir mais.
Desde o primeiro disco, você tem lançado videoclipes que chamam atenção pela poética e linguagem visual. Quando compõe, você visualiza a música por completo, incluindo o clipe? (Silva fez parceria com o fotógrafo Jorge Bispo e o diretor Julio Secchin)
Eu nunca fui muito ligado em clipes. Não sou o tipo de pessoa que entra em sites e fica horas assistindo-os. Mas vi que eles são muito importantes, comecei a entrar mais nesse universo e pensar na musica visualmente. Adoro assistir filmes e contar a ideia que quero, estou gostando de trabalhar assim. No meu primeiro clipe, A visita, não participei de nada: só fui, gravei e olhei para a câmera (risos). Nessa hora, fico bem concentrado e perco a timidez. Meu problema é com o antes, porque fico muito preocupado, sou bastante ansioso.
Hoje, sua música é classificada como pop. No entanto, você sempre flertou com a sonoridade suave da MPB. É uma influência da formação em música erudita, que o acompanha desde a infância?
Trabalho com música desde muito novo e isso acabou pautando minha vida inteira. Até tentei, em vão, trabalhar e estudar outras coisas... Mas minha mãe é professora de música, formada em piano e professora de flauta. Tenho um tio que é pianista clássico. Ou seja, sempre tive a música erudita próxima a mim, apesar de gostar de outros estilos. Não fiquei fechado na formação acadêmica. Meus amigos sempre foram diferentes de mim e eu abria espaço para escutar o que eles ouviam.
Quem produziu o álbum? Todas as músicas são suas e de seu irmão, Lucas?
Os dois álbuns foram produzidos por mim. Sempre gostei do trabalho de um produtor musical. Antes de lançar meu primeiro EP, eu produzia o disco de outras pessoas, meio como uma brincadeira. Adoro fazer arranjos. Quando fui gravar meu álbum, cheguei a procurar outras pessoas, mas vi que isso ia acabar mudando algumas características do meu som. Assumi esse risco, que acabou dando identidade ao meu trabalho. As composições de Vista pro mar sao todas minhas e do meu irmão, Lucas. Tenho a sorte de tê-lo ao meu lado, porque ele é um ótimo letrista. É apaixonado por poesia desde muito novo e tem uma mão boa para escrever. Embora seja seis anos mais velho que eu, somos muito próximos. Tenho liberdade de falar o que gosto ou não gosto, isso é ótimo e tem funcionado com a gente.
Depois de um disco de estreia elogiado, a pressão interna interferiu na criação de Vista pro mar?
Chegou a me atrapalhar um pouco enquanto estava buscando a linha do disco. Ouço música o dia inteiro, eu estava arriscando de hip hop em inglês a pop com toques de R. Mas, vi que isso não caberia no meu trabalho, com a letra em português ficava esquisito. O processo criativo é angustiante, e como era meu segundo disco, queria que tivesse continuidade, mas ao mesmo tempo, que não se repetisse. Foi difícil achar esse meio termo. Quem quer se esforçar para fazer alguma coisa diferente vai passar por isso. Após o lançamento, tento não ler as críticas porque acaba pautando um pouco e limitando sua criatividade nos próximos trabalhos. Posso ouvir 100 elogios, mas basta escutar duas críticas e elas me derrubam. Isso pode atrapalhar a produção de novos álbuns.
De Guilherme Arantes a Tom Jobim, você admira artistas de repertório bem variado?
Não me limito na hora de escolher uma música para ouvir. Mas na hora de criar, faço uma espécie de arquitetura do som. Gosto de me desligar e usar a intuição. Vou testando várias batidas. Tenho músicas com refrão e sem refrão, gosto de trabalhar com essa fluência. Quando estou gostando da batida, vou em frente.
Como é esse processo de passagem da música independente para o mainstream, vendo, por exemplo, uma música sua virar trilha de novela?
Eu sou muito tímido. Acabei sofrendo com algumas situações. Exemplo: quando as pessoas querem tirar foto comigo. A minha timidez deriva de uma profunda autocrítica, mas com o tempo tento melhorar isso. Antes, eu fazia meus shows sentado no canto do palco, e nesse, vou para o meio e toco em pé. Isso parece só um detalhe; Para mim é um avanço muito grande. Amadureci e me acostumei com essa ideia. Sempre gostei de música, mas nunca gostei de aparecer. Entretanto, na carreira que escolhi, em algum momento você tem que se exibir um pouco. Estou gostando desse aprendizado. Quanto a entrar no mainstream, fico feliz quando vejo uma música como trilha de novela, não tenho restrições em relação a isso.
Quando começou o processo de gravação do novo álbum (durante uma viagem a Flórida), tinha ideia do que ele viria a se tornar ou o processo é orgânico -- e você se permite mudanças no meio do caminho?
Tinha uma linha estética já traçada. Mas como não tinha músicas compostas, fiz algumas mudanças no meio do caminho. Decidi que faria um disco mais leve e que não tivessem letras tão densas. Queria falar de coisas mais felizes. Porque você lança o disco e fica tocando aquilo por um ano, repetir aquele humor ficaria algo cansativo. Eu já sabia o nome do CD e onde ele iria chegar, mas me permito fazer adaptações.
Claridão
foi inteiramente produzido por você e gravado em sua casa, e em Vista pro mudar você optou por trabalhar em estúdio em Portugal, com uma banda te acompanhando. Até que ponto a presença de outras pessoas moldou o seu som?
O primeiro eu gravei todo em casa, e no segundo, fui para um estúdio em Portugal, indicado pelo Marcelo Camelo. Sou muito controlador, tenho cuidado com o que tiro e coloco em cada música. Demorei bastante para achar músicos para tocarem comigo e agora a banda cresceu. Alguns músicos tem problema com ego, são mais difíceis de lidar. Achei pessoas legais de trabalhar e que estão abertas as minhas ideias. Eu gravei a maior parte dos instrumentos sozinho, mas fui chamando algumas pessoas para gravar aqui e ali, nos espaços que achava que caberia uma pontuação legal. Foi uma criação menos solitária.
Entrevista com Leo Cavalcanti
Você classifica Despertador como um disco de pop intergalático. Nota-se, por exemplo, que o violão fica um pouco de lado e você investe no uso de sintetizadores. Quais as outras características desse novo projeto?
O pop intergalático é uma brincadeira que eu inventei porque sempre me perguntam que tipo de musica eu faço. MPB ou pop não é suficiente para descrever, então decidiu inventar um gênero. Isso pode trazer algum tipo de informação. Usei imagens de viagens cósmicas na arte do disco, e a sonoridade me remete a isso, não só de viagens cósmicas, mas de viagens internas. Vejo como um álbum acolhedor. Costumo dizer que é um CD amoroso, "para o alto e avante". É uma celebração. Deixei o violão um pouco menos presente para me concentrar um pouco mais na voz. Pensei muito no show, em trazer dança e movimento para o palco. Foi um processo mágico e fluido.
Seu pai, Péricles Cavalcanti, também investe na multiplicidade de gêneros, transitando entre vários ritmos (rock, pop, samba). Vocês trocam figurinhas e ele interfere na gravação de seus álbuns?
Nossas músicas são diferentes. Somos muito conectados pessoalmente, ele acompanha meu trabalho e eu o dele, e nós gostamos do que fazemos. Mas tudo acontece de forma independente, cada um com a sua história. Sou muito grato a ele. Foi meu pai quem me iniciou no caminho da música, comecei tocando com ele aos 13 anos de idade. No entanto, no âmbito da carreira, temos outros caminhos. O admiro muito. Sempre foi uma inspiração vê-lo tocar, mas costumo não associar os nossos trabalhos, porque isso nos limitaria.
O que mudar de Religar, lançado em 2011, para Despertador?
A principal mudança é que no segundo álbum eu me permiti ficar um pouco mais solto. Em Religar, já tinha a ideia preconcebida antes de fazer o disco. Eu já sabia todo o conceito do disco, incluindo o nome. Fiz praticamente todos os arranjos e gravei todos os instrumentos. Estava tudo sob o meu controle. E em Despertador, eu sabia os meus caminhos sonoros e o repertório, mas não tinha uma ideia tão definida -- e eu queria não ter mesmo. Quis delegar um pouco mais, deixar espaço para a banda colaborar e ficar um pouco mais aberto enquanto produtor e arranjador. Foi um processo mais colaborativo. Quando comecei o trabalho, convidei o Fábio Pinczowski. Tudo que tinha eram as minhas músicas e algumas gravações demo. Eu queria simplicidade, um disco com menos camadas. Usamos muitos recursos analógicos na gravação.
Mesmo com o sucesso de Religar, você continuou gravando de maneira independente, sem vínculo com gravadoras. Isso te dá mais liberdade em seu processo produtivo?
Nada me convenceu que estar independente não é uma vantagem. É uma opção minha, acredito totalmente que é fundamental me sentir livre para criar e fazer o que eu quero, do jeito que eu quero, veiculando meu trabalho da maneira que eu desejar. Até agora, não me foi provado o contrário.
O que te inspira a criar?
Costumo dizer cantar é algo vital. Compor, um instrumento terapêutico e um exercício filosófico. Eu realmente utilizo a composição para elucidar e trabalhar os meus dilemas pessoais e me conectar com as coisas que considero essenciais. Vejo a música como uma poderosa meditação, gosto de fazer mergulhos com a música. Existe um aspecto que não consigo nem descrever no meu processo criativo. É quase como se eu recebesse uma informação e aquilo acontecesse de forma mediúnica. Muita gente acha que minha musica é autobiográfica e ela não é. Não tenho menor interesse em falar sobre minha vida.
Como manter a distância entre o que você escreve e o que você vive?
Costumo não trazer minha canções para o particular. Quero usar as minhas experiências de maneira universal para que todos possam se sentir parte delas de alguma maneira. Não são confessionais, não quero fazer esse tipo de música. Mas, o fato de ser um exercício filosófico, claro, faz com que toda musica seja autobiográfica, apesar de não ser esse o meu objetivo. É a mensagem em si que importa.
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