Rio de Janeiro ; Maria Rita começava a contar um caso sobre a mãe, Elis Regina, quando foi subitamente acometida por calafrios. ;Eita!”, disparou, passando a mão pelo braço. As recordações, como se pode ver, ainda comovem e arrepiam, porém ser filha de uma das maiores cantoras do país já não assombra mais a intérprete de 36 anos, nascida em São Paulo. Com pouco mais de uma década de carreira, cerca de 2 milhões de discos vendidos e sete prêmios Grammy Latino na estante, Maria Rita, como ela mesmo diz, pode ;dar uma banana; para quem acha que ela ainda imita a mãe, morta em 1982. Lançando álbum, Coração a batucar, repleto de sambas, a cantora recebeu o Correio para uma conversa exclusiva de quase uma hora em um hotel no bairro carioca de Santa Teresa. Sincera e tagarela, mostrou-se muito mais extrovertida do que deixa transparecer: não fugiu a nenhuma questão e dissecou sem pudores a relação póstuma com a mãe. Confira os principais momentos da entrevista.
Você relutou, no começo da carreira, em abordar o repertório de sua mãe. Depois, acabou fazendo o projeto Redescobrir. O que a fez mudar de ideia?
Pensei: quantos anos eu tenho? Quantos discos de ouro? Quantos países eu já visitei? Daí comecei a me perguntar o que eu devia para as pessoas (que me comparam a Elis). Nada. ;Agora, tenho que provar para mim mesma. Eu sou capaz de cantar essas músicas?; Sou. E ninguém hoje no Brasil faz tão bem quanto eu fiz. Fiquei muito emocionada: estava lá como filha.
Hoje, você está com a mesma idade que sua mãe tinha quando morreu e ainda tem uma longa caminhada pela frente, algo que ela não pôde ter.
Isso mexe muito comigo. No dia em que eu fiz aniversário, foi estranho, como se eu tivesse perdido ela pela segunda vez. Agora, eu estou sozinha, porque sei o que a fez até os 36 anos. Minha mãe era genial, linda, e me inspira ; como todas as mães e pais devem inspirar os filhos. Não tenho mais como comparar. Com 37, ela fez o quê? O que conquistei em 10 anos está longe do que ela teve. Mas não existe uma mãe e uma filha na música que conseguiram o mesmo sucesso que a gente fez. Os filhos do Lennon não chegaram lá. Os do Stevie Wonder também não. Depois de 10 anos, eu posso dar uma banana pra quem acha que eu ainda imito a minha mãe.
Comparações ainda incomodam?
Não me incomodam porque ninguém nasce do nada. Filha de chocadeira, eu não sou. Acho as acusações inadmissíveis. Às pessoas que ousam dizer que eu a imito, perco o respeito na hora, fecho a porta na cara. Uma mãe e uma filha são iguais porque é assim que a genética explica. Não estou inventando nada. Reconquistei uma relação com a minha mãe. Na adolescência, quando me sentia solitária, ouvia uma música dela e me sentia melhor. Larguei por causa dessas pessoas. Daí eu decidi que agora ;vocês vão ver bem como é o negócio;.
Você é filha também de César Camargo Mariano. Pretende fazer algum projeto musical com ele?
Não. Já até pensei, mas meu pai é meu pai. Acho que se a gente trabalhar junto, eu não sei. Algo me diz que, pelo menos, não agora. Meu pai é muito experiente, ele é tão incrível no que faz, e eu sou tão centralizadora. Jogar nessa cumbuca o fato de ser pai e filha eu não sei no que isso pode resultar.
Será publicada em breve uma biografia da Elis, escrita pelo jornalista Júlio Maria. Você já leu? O que acha de os filhos terem que aprovar esse tipo de publicação?
Estou com a prova do livro, mas não li ainda. Acho que essa vai ser ;a; biografia da Elis, porque a outra (Furacão Elis, de Regina Echeverria) não é, não. Existem situações e situações, mas, no geral, acho necessária a autorização, sim. Estão escrevendo uma biografia de uma pessoa que não está aqui pra contar o seu lado da história. Acho que o artista tem, sim, direito à privacidade. É uma interferência na vida de uma família. Fica um revanchismo de ;quem manda ser famoso?;. A pessoa que tem uma carreira pública, quando acorda de manhã, não é a mesma do palco. Tenho total direito de fazer com que meus filhos não saibam de algumas coisas da minha vida.
Você viu a peça Elis, a musical?
Não, estava gravando na época. Não estou pronta para assistir, mas fico muito feliz com o resultado. Eu não tinha dúvidas de que o resultado seria honesto e íntegro. Na estreia, mandei um buquê para o elenco.
"Os filhos do Lennon não chegaram lá. Os do Stevie Wonder também não. Depois de 10 anos, eu posso dar uma banana pra quem acha que eu ainda imito a minha mãe;
No novo disco, você canta Saco cheio, de Almir Guineto, que critica o fato de que ;tudo que se faz na Terra/Se coloca Deus no meio;. Você acredita em Deus?
Não sou religiosa. Durante muito tempo, fui completamente ácida em relação a isso. Não conseguia acreditar em um deus que tirava a mãe de uma criança de 4 anos de idade. Então, minha relação de desentendimento passava pela perda da minha mãe. Mais tarde, tive um ataque de pânico e achei que fosse morrer. Comecei a perceber que tinha algo maior. Eu acredito em um deus. Acredito que aquele tal de Jesus Cristo existiu de verdade. Mas não sou de uma religião.
Samba meu (2007), seu primeiro disco de samba, passava a impressão de ser mais solar do que o Coração a batucar. Isso reflete a fase que você vive atualmente?
Não. No Samba meu, queria que não ficassem dúvidas do tipo de samba que eu gosto de ouvir, de fazer. Comprei uma briga. Era outro momento, era a turma de quem eu frequentava a casa. Com esse, senti que não tinha que provar mais nada. Estou um pouco mais liberta. Acho que ele traz esse clima menos solar, apesar de eu não estar menos solar.
O Xande de Pilares, líder do grupo Revelação, tem três músicas no disco novo. O que acha da segregação entre pagode e samba?
Longe de mim querer rotular. Queria muito ver alguém que me dissesse qual é a definição de um e de outro. O universo do samba é muito grande. Quando comecei a fazer a pesquisa de repertório do Samba meu, vi a imensidão desse gênero. Tem vertentes, tem história, tem tradições. E o que eu mais vejo por aí é uma rejeição ao termo samba de raiz. Você fala isso e o pessoal: ;Eu não sou árvore;.
Durante a gravação de um disco, a gravadora se mete na questão artística?
Não. Com a minha primeira gravadora, eu tive o ( Tom) Capone como fiel escudeiro, que brigou muito pelo meu direito de independência artística lá dentro. Agora, partiu da atual gravadora a ideia de eu gravar o Coração a batucar. Eles não se metem no meu trabalho, eu não me meto no deles. Quando falam ;a gente precisa disso, disso e daquilo pro disco ficar pronto;, eu digo OK.
Isso ocorre por você ser uma artista de status diferenciado?
Acho que sim. Falando como empresária, se estou entregando resultado, tudo bem. Eu não entendo nada de marketing, não vou dizer o que eles fazem ou deixam de fazer. Temos uma parceria. A gravadora me disse que eles me entendem como uma artista de obra, que vende disco, não singles. Isso gera um conforto pra eles. Tem um lance com o público que faz com que o investimento valha a pena.
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Você lançou dois álbuns em que não havia quase nada de samba. De repente, mudou de rumo. Como você analisa essa virada?
Passou a ser uma virada. Eu acho que o Samba meu (2007) me levou, fisicamente, a lugares que eu não tinha ido. É uma questão exclusivamente mercadológica. O contratante dos shows investe o dinheiro onde ele acha que vai dar retorno. Fui a lugares inesperados. Cada plateia era uma plateia. No Norte do Brasil, as mulheres iam de vestido longo, todas maquiadas, elegantes. E eu imaginei: ;Gente, vocês vieram a um show de samba assim?;. Daí o contratante local falou: ;Não, elas vieram assistir a um show da Maria Rita;. Mas eu sempre flertei com o samba. Mas por um excesso de respeito, por um excesso de zelo, ficava com um pouco de medo de fazer errado.
São sete anos desde esse último disco de samba. Por que demorou tanto?
Quando fui forçada a encerrar o Samba meu, chorei muito, me senti abandonada, foi uma despedida terrível pra mim. Não fiquei legal. De novo: por questões mercadológicas. Os contratantes me perguntavam: ;Já ouvimos esse show um monte de vezes, não tem outra coisa?;. Quando comecei a ouvir isso, eu e o meu escritório decidimos que estava na hora do adeus.
O disco Elo (2011) foi gravado para cumprir o contrato com a antiga gravadora?
É muito comum dizerem isso. É que todo o contexto desse disco é atípico. Claro que eu tinha um disco para cumprir com a gravadora, mas não foi por isso que gravei o Elo. Gravei mais porque tinha uma enxurrada de pedidos de fãs para que aquele show virasse um DVD. Até porque a gravadora nunca me botou na parede para gravar um disco. Uma vez aconteceu, mas eu falei: ;Tudo bem, já estou de saco cheio desse;.
E o Redescobrir, em homenagem a Elis. Você trouxe o público dela até você?
O Redescobrir era um show família. E tinha uma expectativa do bem. De saudade boa. Eu via isso estampado no rosto das pessoas e falei: ;Bicho, ainda bem que eu fiz isso agora;. Eu subia no palco com medo. Medo de fazer tudo errado, mas quando você vê; O primeiro show que eu fiz foi em Porto Alegre. Tinha 70, 80 mil pessoas cantando aquelas canções em um coro. No momento do show que eu falava da minha mãe como minha amiga, como minha companheira, como parceira de palco, eu via as mães se emocionando. Eu vi pais se emocionando. Eu vi filhos se emocionando. Isso mexeu muito com o geral.
Com pouco mais de dez anos de carreira e tanto sucesso, já da para se sentir plenamente realizada?
É lógico que não (risos). Tem tanta coisa que eu ainda quero fazer. Eu sou muito inquieta. Eu tenho muito orgulho de ter encontrado o meu lugar no mundo. Eu vivo de música e isso é uma honra. A perspectiva é essa. Hoje, o que eu já fiz é incrível. E até o último dia da minha vida eu vou continuar fazendo isso. Eu tenho muitos projetos na cabeça. Tenho vontade de fazer muita coisa. Trabalhei em estúdio por muito tempo. Gostaria de saber mais sobre essa coisa de mexer nos periféricos, na mesa. Essa coisa de direção de show, gostaria de dirigir outros artistas. Gostaria de musicar. Gosto de escrever. Tem muita coisa que eu ainda gostaria de fazer.
Como é a Maria Rita no dia a dia?
Eu gosto de ver filme, gosto de passear com as crianças. Faço muito o que eles querem. Passear na rua, passear no shopping, no restaurante. Eu me sinto segura de sair. Não vivo em uma faixa de gaza de paparazzi. Sei onde eles estão. Se eu não tô a fim de me expor, eu não vou. Se estou, eu vou. Então eu gosto de receber pessoas em casa também. A abordagem dos fãs é muito tranquila.
O que você coloca para seus filhos ouvirem em casa?
De tudo um pouco. Tem desde Pharrell Williams e Michael Jackson a Moraes Moreira e Maria Rita (risos).
E o que você viu recentemente no cinema?
Um filme que me abalou as estruturas, que eu achei tão doce, tão bonito, foi Walt nos bastidores de Mary Poppins. E Doze anos de escravidão, esse me derrubou. Mexeu muito comigo. Ah, o Mordomo da Casa Branca também mexeu muito comigo. A questão racial mexe muito comigo. Tenho um centro de justiça muito reto e isso me faz sofrer muito. Mas ultimamente eu não sofro, eu fico irritada, eu fico brava. Estamos vivendo um momento muito nebuloso. O brasileiro é um povo muito sofrido. Vemos impunidade, mentira, oportunismo, a gente sabe que não tem pra onde correr. Tá estranho o negócio. A maternidade me faz conversar muito sobre valores com meus filhos. Pretendo instigar o senso crítico e os valores deles.
O repórter viajou a convite da Universal Music.