Em Futebol ao sol e à sombra, o escritor Eduardo Galeano lembra que o esporte se tornou um negócio lucrativo com vários objetivos, inclusive o de não ser organizado para ser jogado, e sim para atender interesses de uma tecnocracia profissional. Depois de algumas considerações pertinentes, Galeano se investe de um humor ferino para descrever cada um dos componentes de um jogo: torcedor, fanático, ídolo, jogador, goleiro. Mas o escritor é também um dos maiores críticos e observadores dos fatos sociais e políticos do continente latino-americano. É pelo trânsito e pela habilidade em falar desses temas que o uruguaio divide hoje com Mário Magalhães a mesa Futebol e ditaduras na América Latina, debate que acontece no Auditório Nelson Rodrigues da II Bienal Brasil do Livro e da Leitura.
[SAIBAMAIS]Galeano era jornalista no Uruguai quando o golpe militar instalou a ditadura, em 1973. Acabou preso e, quando libertado, foi para a Argentina, mas o golpe de 1976 o afastou para ainda mais longe. A postura combativa e de esquerda o levou direto à lista dos esquadrões da morte responsáveis pela repressão política, e o escritor fugiu para a para a Espanha. Na época, ele já havia publicado As veias abertas da América Latina, o longo ensaio no qual destrincha os efeitos das dominações europeias no século 19 e americana, mais recentemente, no desenvolvimento dos países do continente, e Vagamundo, uma reunião de pequenos contos com histórias que remetem ao imaginário latino-americano.
No exílio, ele escreveu a trilogia Memória de fogo, obra de fôlego que revisita toda a história da América. Galeano gosta de abordar a construção da identidade latino-americana. ;Um velho provérbio africano nos ensina: ;Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caça deixarão de glorificar os caçadores;;, conta o escritor, em entrevista ao Correio. Sobre as guerras que assolaram o mundo no passado e ainda hoje perduram como instrumento de definição de hegemonias, ele é categórico: ;Nenhuma guerra tem a honestidade de confessar: ;Eu mato para roubar;. Todas matam em nome da civilização e da democracia e obedecem às ordens que baixam do Céu;.
Leia entrevista com Mário Magalhães, autor de Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo:
O que você acha das releituras do golpe que estão sendo feitas? Especialmente aquelas mais conservadoras que tendem a negar a existência de uma ditadura e a encarar o golpe como uma revolução?
O que ocorre é exatamente o contrário: foi preciso esperar meio século para que a historiografia e o jornalismo brasileiros qualificassem, quase unanimemente, o golpe como golpe e a ditadura como ditadura. Por muitas décadas, o golpe de Estado de 1964 foi tratado como "movimento militar" e "revolução". A ditadura era chamada, no máximo, de "regime militar". Cinquenta anos depois, o país demonstra que entendeu que a deposição do presidente constitucional João Goulart foi uma tragédia que instaurou governos de barbárie. Os segmentos que recusam as denominações "golpe" e "ditadura" representam ultraminorias. São as viúvas da ditadura. Fazem muito barulho, mas não passam de meia-dúzia de passadistas, como comprovaram as malsucedidas reedições das marchas da família. Nem no Clube Militar, no Rio, os veteranos do golpismo tiveram coragem de se reunir. Acabaram promovendo um convescote em local distante, na zona oeste da cidade.
Por que é importante revisitar a história do Marighella hoje? Como conhecer nossa própria história pode nos ajudar a mudar o futuro?
Primeiro, porque contar a história do Brasil no século 20 omitindo Carlos Marighella constitui desonestidade intelectual e crime de lesa-história. Marighella esteve nas primeiras páginas dos jornais brasileiros durante quatro décadas, dos anos 1930 aos 1960. A partir de 1967, transformou-se em personagem internacional. É legítimo amar ou odiar Marighella, porém é impossível ficar indiferente à vida trepidante que ele teve. Conhecendo sua trajetória, acompanhamos a escravidão (ele era neto de escravos); a imigração europeia (era filho de italiano); as refregas históricas da Bahia (onde ele cresceu); as viradas e tensões do Brasil, da Revolução de 1930 à luta armada contra a ditadura implantada em 1964; os alucinantes épicos internacionais, da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) à Revolução Cubana (1959), incluindo a Segunda Guerra (1939-1945); os embates no Congresso em defesa de progressos sociais e democráticos (ele foi constituinte e deputado federal); grandes mobilizações, como greves que marcaram época; o golpe de 1964 (ele tentou evitar); o empenho das gerações que encararam a ditadura; os expoentes da direita, antagonistas de Marighella, e da esquerda do país; e a nossa vida cultural (ele foi amigo de grandes artistas, intelectuais e cientistas). Certa historiografia oficial tentou eliminar os rastros de Marighella da história nacional. Ainda hoje ele não existe nos livros escolares. Não defendo que os livros o promovem, nem que o condenem, e sim que não o escondam. Enquanto Marighella for omitido nas aulas, ele será um brasileiro maldito.
Você vai estar em uma mesa com Eduardo Galeano sobre futebol e ditaduras na américa latina. Como os dois temas podem ser relacionados?
As ditaduras que infernizaram a América do Sul da década de 1960 à de 1980, notadamente as de Brasil e Argentina, tentaram se beneficiar de triunfos esportivos. Aqui, o desempenho da seleção nos 21 anos de ditadura ficou abaixo do que existiu sob ares mais democráticos. A ditadura impediu que Zico, que havia tido uma prima e um irmão presos, disputasse a Olimpíada de 1972. A ditadura, que tinha um almirante no comando da antiga CBD, hoje CBF, permitiu que o regulamento da Copa de 78 favorecesse a Argentina governada pelo general Videla. A ditadura baniu o futebol feminino, por isso até hoje, a despeito de contarmos com a craque Marta, estamos atrás de norte-americanas, europeias e asiáticas. A ditadura foi catastrófica para o Brasil e também para o nosso esporte. Trato longamente do tema no ensaio-crônica "Jogo da memória", que integra o livro "Crecer a golpes", lançado nos Estados em dezembro de 2013. O organizador é o escritor argentino Diego Fonseca, e os autores são Leonardo Padura (Cuba), Jon Lee Anderson (Estados Unidos), Martín Caparrós (Argentina) e outros escritores que admiro. Coube a mim escrever sobre o Brasil. O mote do livro é saber o que aconteceu com os países latino-americanos nos últimos 40 anos, desde o golpe no Chile, em 1973.
II Bienal Brasil do Livro e da Leitura
Visitação até 21 de abril de 10h às 22h, na Esplanada dos Ministérios.
Futebol e Ditaduras na América Latina
Com Eduardo Galeano, Lúcio de Castro, Mário Magalhães e Rodrigo Merheb. Hoje, às 16h, no auditório Nelson Rodrigues. Senhas serão distribuídas antes do evento
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