Diversão e Arte

Millôr Fernandes será tema de exposição, palestras e relançamentos na Flip

A escolha do nome como homenageado foi tão natural quanto o convite para Millôr participar da primeira Flip, em 2003

Nahima Maciel
postado em 29/07/2014 08:24

Millôr Fernandes era um pensador, um filósofo de superfícies e profundidades. Usava como método desenhos, frases curtas e haicais. Tudo que ele queria dizer estava ali em traços espontâneos, soltos e leves de imensa habilidade. Íntimo de cores e materiais, fazia festa com nanquim, guache, lápis, cera ou computador. Um gênio, segundo amigos e colegas que trabalharam com ele. ;O Millôr é o mentor, o capitão de um time admirável, de uma geração prodigiosa. Fortuna, Claudius, Ziraldo; todos foram influenciados por ele;, conta o cartunista Cássio Loredano, consultor do Instituto Moreira Sales sobre o acervo de Millôr. E acrescenta: ;Ele é um curinga. O homem dos sete instrumentos. Ele é excelente. Não tem uma coisa em que se destaque mais.;

[SAIBAMAIS]A segunda passagem de Millôr Fernandes pela Flip vai ser agitada. Será impossível não esbarrar no humorista durante os quatro dias de festa. O guru do Méier (bairro da Zona Norte do Rio) será tema de exposição, palestras, homenagens e relançamentos. A escolha do nome como homenageado foi tão natural quanto o convite para Millôr participar da primeira Flip, em 2003.



Quando colocou o nome do carioca na lista de prováveis homenageados, no ano passado, o curador Paulo Werneck conta que viu os olhos dos colaboradores brilharem. ;Ele tem uma coisa muito interessante que é o trânsito entre o pop e o erudito. Ele poderia ter se encastelado nos livros, no teatro, mas não, ele resolveu produzir para o público das revistas brasileiras semanais. E isso do começo ao fim. Até o fim ele estava lá, rabiscando nos jornais. Acho importante ter um intelectual erudito como o Millôr, que tenha se voltado para a massa. Isso é revolucionário;, acredita Werneck. Como parte da homenagem, a organização da Flip vai publicar o Daily Millôr, um jornal em cinco edições que será escrito à moda do humorista. O texto e as ilustrações vão ficar por conta de Antonio Prata, Luis Fernando Veríssimo, Chico Caruso, Reinaldo e Ivan Fernandes, filho do escritor. O homenageado também terá sua história contada na exposição Millôr, 90 anos de nós mesmos na Casa de Cultura de Paraty.

Precoce

Para o curador da Flip, Millôr era muito mais que um humorista ou um ilustrador. Ele vem de uma tradição de intelectuais múltiplos e abertos ao mundo, além de ter sido um dos primeiros brasileiros a sofrer a influência das histórias em quadrinhos, que chegaram ao Brasil em 1934. ;Millôr tinha 10, 11 anos e foi um dos primeiros a conhecer esse negócio que na época se chamava ;historietas;. Todas as gerações brasileiras depois foram educadas pelo quadrinho também, só que às vezes a gente esquece isso por força do preconceito intelectual que existe;, diz Werneck.

Três perguntas para Claudius

Que lembranças da convivência com o Millôr mais te marcaram?

Creio que o que mais me marcou no Millôr foi sua fidelidade a si mesmo, seu destemor de livre-pensar. Eu era adolescente, aí pelos 16 anos., quando trabalhava de dia na seção de diagramação da revista O Cruzeiro e estudava à noite. Millôr era uma de minhas referências mais fortes, porque desde criança eu lia a seção O Pif Paf do Cruzeiro, uma das revistas semanais que meu pai comprava regularmente. Há uma teoria que diz que não devemos conhecer as pessoas que admiramos, porque podemos nos decepcionar irremediavelmente. É aquela coisa do dito popular "de perto ninguém é normal". Mas conhecer o Millôr e gozar de sua amizade foi uma das melhores coisas que me aconteceram na vida. Ao longo dos anos ele sempre foi um incentivador, cuja opinião sobre meu trabalho, não posso negar, me surpreendia e envaidecia em igual medida. Ele foi e continua sendo uma referência, um modelo de viver plenamente sua vida e exercer seus dons.

Diante de tudo o que ele produziu, o que mais chama sua atenção?

Tudo o que Millôr fez tinha a marca da qualidade. Ele era carioca do Meyer e seu humor tem as melhores características do que se pratica diária e popularmente nas ruas, nos bares, nos ônibus, trens e metrô, na praia ou na favela. Millôr refinou esse humor, mas mantendo-o genuinamente popular, imediatamente identificável, capaz de instantânea comunicação. Sendo local, esse humor é paradoxalmente também universal. Imagino o que teria acontecido se o Millôr escrevesse em inglês. E aí está um desafio: bem traduzí-lo, preparando o público para poder usufruir plenamente da genialidade de nosso bardo, da maravilhosa qualidade do seu texto e pensamento.

O que você caracterizaria como a marca do trabalho dele, em todas as linguagens: teatro, artes gráficas, literatura; levando em consideração a independência dele diante dos regimes políticos?

Como eu disse, ele era bom em tudo o que fazia. O desenho espontâneo, solto, livre, escondia uma imensa habilidade de traço. Quando coloria, era uma festa, qualquer que fosse o material que utilizasse - nankin, aguada, guache, lapis cêra ou computador. Mas talvez seja o seu texto o que revela muito mais a amplitude de sua capacidade intelectual, é o que permanecerá de mais forte: o fino humor, a ousadia de criar Hai Kais (seu livro de hai kais é simplesmente extraordinário), as peças teatrais e os roteiros para cinema que escreveu, as traduções extremamente cuidadosas, inovadoras. Difícil arriscar-se a dizer o que sobressai em meio a tantas demonstrações de talento.

Quanto aos regimes políticos, creio que o senso de humor permitiu que Millôr os relativizasse, reduzindo-os às suas verdadeiras dimensões, por vezes mesquinhas, ridículas, insignificantes. Demonstrou uma coragem provocadora, altiva, durante a ditadura e não poupou todos quantos vieram depois, distribuindo igualmente entre eles o seu humor vitriólico. Mas não deixou de tomar posição, publicamente, quando julgou necessário. Sua defesa de Brizola como o melhor candidato a governador do Rio de Janeiro nas eleições de 1982, usando o seu espaço para falar bem dele, numa publicação cuja linha editorial pintava Brizola como um demonio, é um exemplo de independência tão extraordinário quanto - infelizmente - raro.

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