Diversão e Arte

Trombonista Vittor Santos fala em entrevista sobre o disco Co(n)vivências

"O talento é a confirmação de que se deve estudar. O Brasil se perdeu na ideia de que talento é tudo", defende o músico

Gustavo Falleiros
postado em 10/10/2014 09:00

O novo álbum traz composições inéditas do instrumentista

Um novo disco de Vittor Santos é como a passagem de um cometa bissexto. Trata-se de um acontecimento, mas só para os atentos. O trombonista de 49 anos, natural de Petrópolis, atrai para sua órbita vários dos melhores instrumentistas brasileiros em atividade. Ele é o professor deles, uma referência em teoria musical, improviso, arranjo e harmonia. Há poucos com essa vocação ; Ian Guest, Antonio Adolfo e o saudoso Almir Chediak (1950-2003) são os outros nomes geralmente lembrados.

Co(n)vivências sai agora, 8 anos depois do expansivo Renovando as considerações, que reforçava a afinidade espiritual entre Vittor e o maestro Moacir Santos. Já o novo CD busca instalar um clima íntimo, no qual os músicos conversam despreocupadamente, ao vivo em estúdio. "Num sábado, 11 de janeiro deste ano, eu liguei para cada um dos músicos e perguntei: ;Tá disponível amanhã? Então venha para o estúdio que a gente vai gravar um negócio entre duas da tarde e 10 da noite;. Ninguém sabia de nada. O Fernando Clark, guitarrista que trabalha comigo há 23 anos, fica desesperado", diverte-se.



[SAIBAMAIS]Esse tipo de acrobacia sem rede de proteção dá certo porque os envolvidos falam a mesma língua. Como educador, Vittor prefere resumir assim: "O disco é o resultado do convívio ; o convívio que gera as vivências." Ele se refere a um contexto amplo, que envolve desde a amizade entre os instrumentistas até o atual estado da música praticada no Brasil (que ele avalia como promissor). Co(n)vivências traz composições inéditas do trombonista e deixa entrever o pensador da arte por detrás de solos límpidos. São essas concepções, originais e instigantes, que guiam a conversa a seguir.

Uma parte grande da sua obra não foi gravada, correto?
Desde que eu parei com a Vittor Santos Orquestra, em 2000, comecei a mexer com composição de maneira mais intensa, com diversas formações. Tem algumas coisas sinfônicas, poucas delas divulgadas. Uma dessas peças foi gravada agora pela Sinfônica Jovem de Cuiabá. Eu chamo de Divagações essa série de caráter erudito europeu, essa que foi gravada foi a de número 22. Mas já tenho 37.

E você mesmo não pensa em interpretar essas peças?
Não, porque minha alçada de atuação como instrumentista não é na música erudita. Minha formação no trombone é empírica. Então, meu namoro com essa música é mais como compositor. Agora, isto sim: escrevi um concerto para o (bandolinista) Hamilton de Holanda em 2006. O Hamilton tem as partes e nós já as ouvimos virtualmente. Não foi estreado porque é caro de realizar e ele, naturalmente, vem privilegiando o trabalho dele.

O que você gostaria de realizar, então?
Você conhece o trabalho do (arranjador e compositor polonês) Claus Ogerman? Você conhece o disco Symbiosis? É o Bill Evans Trio com uma orquestra sinfônica. Meu sonho de consumo é esse. Se, algum dia, eu tivesse condições de bancar uma orquestra, faria esse trabalho.

Você tem um pensamento sobre essa coisa de erudito e popular?
Tenho sim, mas eu sei que é polêmico. Quando as pessoas se aproximam do meu trabalho, elas acabam chegando à pergunta: "A sua música é erudita ou popular?". Para mim, a erudição não tem nada a ver com o repertório. Tem a ver com a forma como aquilo foi tratado para, então, ser apresentado. A erudição está no traço de quem realiza a coisa. Se você tem conhecimento de causa, vai fazer aquilo com propriedade. E isso vale para desde o pagode da esquina até o concerto no Theatro Municipal. A música é sempre erudita em si mesma. A forma é que vai instaurar. E aí não gosto de chamar popular: gosto de chamar de vulgar. Porque a música do Beethoven era popular. Mozart fez coisas para dançar ; e não estou falando de ballet, estou falando de baile.

E você, como fica nisso?
O que conquistei com o instrumento foi sem o traço da erudição. Peguei o trombone e fui tocar na noite, há 30 e tantos anos trás. Mas o que aprendi ; via Ian Guest, sobretudo ; me deu condições de fazer a coisa com propriedade, aquilo que se chama de erudição.

Os tais "mistérios da trama sonora";
Quer ver uma coisa interessante? Para mim não existe música feia. O que existe é música mal-cuidada. Isso em duas esferas. Uma é propriamente musical: o indivíduo não consegue ir além do que realizou. O segundo aspecto: o mercado. O mercado toma posse de alguns elementos da música para endossar o que eu chamo de "mercado de si mesmo". E não podemos confundir a música com o "mercado de si mesmo", que usa a música de maneira espúria. As pessoas querem aparecer de todo jeito e inventaram um esquema que, sem a música, ele não faz sentido.

Você continua fazendo trilha sonora?
Tenho feito coisas como terceirizado na Globo, normalmente para as novelas. Dessas que estão no ar, não tenho participação. Mas fiz várias com o Mú Carvalho (tecladista, arranjador, ex-membro do A Cor do Som). Por exemplo, Ti ti ti e Guerra dos sexos. Trabalhei muito com o (compositor e produtor musical) Alberto Rosenblit em Laços de família, Mulheres apaixonadas, A favorita, aquelas do Manoel Carlos. E tem sido muito bom, porque a fase dos teclados acabou. Hoje em dia se grava com orquestra.


Quando as pessoas se aproximam do meu trabalho, elas acabam chegando à pergunta:


E o trabalho como educador?
Comecei a fazer isso muito cedo. Em terra de cego, quem tem um olho é rei, e a gente tem que correr atrás. A coisa da educação foi tomando uma forma muito consistente. Aconteceu um fato muito interessante nos últimos anos, desde o surgimento do Hamilton (de Holanda). Não necessariamente por causa dele, mas ele é um marco. Primeiro, foi a profusão de virtuoses. Surgiram muitos e a gente vinha de uma safra em que isso não acontecia. Havia instrumentistas consistentes, mas não virtuoses. Nessa mesma leva, veio também uma coisa muito importante: apareceu uma consciência da necessidade de se estudar a música, não só de realizá-la.

Você torna a citar o Hamilton;
Digo que o Hamilton foi a ponta do iceberg disso. Ele trouxe uma carga, como se arrastasse uma rede. Junto com ele, vem um monte de peixes. Gosto de analogias. É impressionante como, nos últimos 10 anos, houve uma virada muito radical. Agora, uma distinção importante: nem todo amante da música é talentoso da música. Nem todo talentoso é competente e profissional. São coisas que precisam ser separadas. Se a pessoa tem talento, o talento é a confirmação de que o indivíduo deve estudar. O Brasil se perdeu na ideia de que talento é tudo.

Quais são seus alunos?
Lecionei já para o (saxofonista) Léo Gandelman, para o (clarinetista) Paulo Sérgio Santos, o (guitarrista) Ricardo Silveira, o (guitarrista e produtor Nando Chagas), a (cantora e guitarrista) Ana Zingoni, o (contrabaixista) André Vasconcellos está estudando atualmente comigo;

O Brasil começa a formalizar a música popular, como os EUA fizeram com o jazz?
Extamente. A Berklee (College of music) foi fundada em 1944 e o material didático é de uma precisão ímpar. Chegou no Brasil oficialmente em 1979, via Ian Guest e Célia Vaz (violonista, arranjadora). Eles resolveram didatizar o assunto em português, traduziram. E isso vem se difundido desde então, cada vez mais. É uma visualização muito nítida do que é a trama musical, independentemente de estilo.

Você pensa a música em termos metafísicos?
Uma vez me perguntaram: "Qual é a relação que a vida tem com música?". Na verdade é o contrário: a vida contém a música. E a música dá testemunho da vida. A vida é toda baseada no princípio da relação. O que é música? Música é a combinação (ou a relação) de sons. Entendo que cada nota representa um traço da personalidade humana. E aí, quando elas são combinadas, vão gerando ambientações ; ou vivências. Quero estar disponível, na posição de instrumento da música para que a música possa ser instrumento da vida ; uma coisa puxando a outra.

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