Diversão e Arte

Admiração por Fernando Pessoa une Cleonice Barardinelli e Maria Bethânia

Em entrevista ao Correio, Cleonice Berardinelli, maior especialista do poeta no Brasil, fala sobre a amizade com Maria Bethânia, outra admiradora do escritor, que resultou em um DVD

Irlam Rocha Lima
postado em 13/12/2014 08:00

Cleonice Berardinelli e Maria Bethânia : amizade dura há quase duas décadas

Cleonice Berardinelli foi apresentada a Maria Bethânia pelo professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) Júlio Diniz quando ele a levou ao Canecão, em 1995, para assistir ao show da cantora, Imitação da vida. O que as aproximou foi a paixão de ambas pela obra de Fernando Pessoa, o poeta português, do século 19, com forte presença na obra das duas.

O desdobramento da amizade, surgida naquela extinta casa de espetáculos carioca, trouxe ótimos frutos. Em 2013, elas se apresentaram em recital na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) e exibiram conhecimento de causa: Dona Cléo, 98 anos, imortal da Academia Brasileira de Letras, na condição de maior especialista em Pessoa no Brasil; e Bethânia, que ao longo de 50 anos de carreira, popularizou a obra do lusitano, incluindo versos de poemas no roteiro dos shows e no repertório de discos.



Logo depois, a leitura foi filmada no estúdio da gravadora Biscoito Fino, durante dois dias, pelo diretor Marcio Debellian. No filme, ele faz a costura dos poemas com conversa sobre a obra de Pessoa, ressaltando aspectos da personalidade de seus heterônimos Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis.

[SAIBAMAIS]Na gravação, o clima de intimidade e humor foi determinante para a interação entre a professora carioca e a artista baiana, e contribuiu para pontuar o ritmo e a fluidez do roteiro. Houve, ainda, a apropriação de trechos da carta na qual o próprio Pessoa explica a gênese de seus heterônimos ao também poeta Adolfo Casais Monteiro.

Sob o título O vento lá fora, o documentário filmado em preto e branco, tem duração de 64 minutos, com trilha sonora que traz o pianista Nelson Freire interpretando trechos de obras de Liszt e Schumann e composições de Egberto Gismonti, executadas em flauta e violino, além de uma pequena participação de Bethânia ao piano.

Os heterônimos de Fernando Pessoa

Por meio de heterônimos, Fernando Pessoa mostrava um vasto projeto artístico: eles tinham biografia, estilo e ideais próprios, além de serem bem diferentes uns dos outros. Foram mais de 70 heterônimos criados, alguns desenvolvidos completamente, outros não. Os mais marcantes foram: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.


Alberto Caeiro
Alberto Caeiro era o mestre de todos os outros heterônimos, além de ser mestre do próprio Fernando Pessoa. Nascido em 16 de abril de 1889, Caeiro era órfão de pai e mãe e viveu a vida inteira no campo com sua tia. Fruto de um local bucólico, Caeiro defende a simplicidade da vida e seus pensamentos são extraídos do contato com a natureza e a vida simples. Ele procurava ver o real e como a realidade se configura de maneira simples.
Os pensamentos e as sensações do poeta eram obtidos por meio dos sentidos do ser humano, sem a interferência do pensamento humano. Para ele, as coisas ;eram como eram;, não havia necessidade de pensar. Tudo era objetivo. Caeiro faleceu em 1915, tuberculoso.
Sendo o mais intelectualizado entre as personalidades pessoanas, Caeiro foi o que menos se preocupou com o trabalho formal do poema. Daí o comentário crítico do seu discípulo Ricardo Reis: ;Falta nos poemas de Caeiro aquilo que deveria completá-los a disciplina exterior. Não subordinou a expressão à uma disciplina comparável àquela a que subordinou, quase sempre, a emoção e sempre, a idéia.;

Se eu morre novo

Se eu morrer novo,
Sem poder publicar livro nenhum,
Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa,
Peço que, se se quiserem ralar por minha causa,
Que não se ralem.
Se assim aconteceu, assim está certo.

Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos
Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.
Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,
Porque as raízes podem estar debaixo da terra
Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.
Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.

Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi coisa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.

Não desejei senão estar ao sol ou à chuva ;
Ao sol quando havia sol
E à chuva quando estava chovendo
(E nunca a outra coisa),
Sentir calor e frio e vento,
E não ir mais longe.

Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado,
Não fui amado pela única grande razão;
Porque não tinha que ser.

Consolei-me voltando ao sol e à chuva,
E sentando-me outra vez à porta de casa.
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados
Como para os que o não são.
Sentir é estar distraído.

Ricardo Reis
Nascido em 19 de novembro de 1887, no Porto, Ricardo Reis tinha formação em medicina. Exilou-se no Brasil porque não concordava com a Proclamação da República Portuguesa. É uma face de Fernando Pessoa ligada ao clássico, à cultura greco-latina.
Ricardo Reis valorizava a vida campestre e a simplicidade das coisas, mas ao contrário de Caeiro, ele não se sente feliz e integrado à natureza, sentindo-se fruto de uma sociedade decadente, que caminha para a destruição. Para Reis, o destino de todos já havia sido traçado e só restava aproveitar a vida ao máximo.

Bocas roxas de vinho

Bocas roxas de vinho,
Testas brancas sob rosas,
Nus, brancos antebraços
Deixados sobre a mesa;

Tal seja, Lídia, o quadro
Em que fiquemos, mudos,
Eternamente inscritos
Na consciência dos deuses.

Antes isto que a vida
Como os homens a vivem
Cheia da negra poeira
Que erguem das estradas.

Só os deuses socorrem
Com seu exemplo aqueles
Que nada mais pretendem
Que ir no rio das coisas.


Álvaro de Campos
Era a face mais ligada ao modernismo e ao futurismo. Nascido em 15 de outubro de 1890, em Távira, Álvaro é engenheiro formado em Glasgow, mas não exerceu a profissão por não gostar de sentir-se preso em escritório. De tipo vagamente judeu português, com a pele entre branca e morena, cabelo liso e normalmente apartado ao lado, usa monóculo, Álvaro é um homem voltado para o presente e sua poesia busca transmitir o espírito do mundo moderno.
Teve três fases: decadentista, futurista e pessoal. Na fase decadentista há uma ligação com o simbolismo, um descontentamento, o tédio em relação ao mundo presente; na fase futurista vemos a ligação com o moderno e o tempo presente, que passava por modernização; na fase pessoal, vemos questionamentos sobre si próprio, descontentamentos e certo abatimento.

Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos,
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim;
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas ;
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas ;,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo.
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocotte célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno ; não concebo bem o quê ;,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como
tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como a uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu


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