Nahima Maciel
postado em 21/12/2014 08:00
O Projeto de Lei 393 de 2011, que vai permitir a publicação de biografias sem autorização prévia dos biografados e seus herdeiros, ainda está na mesa dos senadores, mas o mercado não se abala. Neste final de ano, as prateleiras das livrarias recebem pelo menos cinco biografias que podem animar as férias de final de ano para quem as tem ou simplesmente causar uma comichão em quem é fissurado pelo gênero. Luís Carlos Prestes é o biografado de Daniel Aarão Reis, professor do departamento de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF). Foram cinco anos para escrever Luís Carlos Prestes - Um revolucionário entre dois mundos, a biografia de um dos mais conhecidos e longevos políticos brasileiros. Reis queria entender quem realmente era Prestes e se distanciar das ideias extremas que transformaram demonizaram ou exaltaram excessivamente o personagem.
O autor também mergulha em temas polêmicos sobre a família do Cavaleiro da Esperança como as filhas nascidas do segundo casamento da mãe, cujo pai desapareceu, e um segredo sobre a paternidade do próprio Prestes em relação aos filhos. Reis não teve problemas com a família e não sofreu censura para escrever a biografia. Do lado da mulher do personagem, recebeu apoio e muitas informações. De Anita, a filha nascida da união com a alemã Olga Benário, Reis teve pouco retorno.
Entrevistas com Ana Miranda e Daniel Aarão Reis
Ana Miranda se encantou com o poeta Gregório de Matos quando era menina, depois de ler alguns poemas e de descobrir a verve irreverente do personagem. Garota, a escritora também sonhava com o poeta. Mais tarde, escreveu Boca do inferno, a biografia romanceada de Matos. Vendeu mais de 100 mil exemplares do livro desde que foi lançado, em 1989. Agora, Ana volta a Matos para contar a história do menino baiano cuja poesia, barroca na essência, levava a marca da ousadia.
Pode contar um pouquinho como começou seu encanto por Gregório de Matos? Foi com Boca do inferno?
O meu primeiro romance, Boca do Inferno, já nasceu de um fascínio pelo poeta, que me apareceu em sonhos depois que li, na escola, pela primeira vez poemas seus. Eram poemas líricos, mas fiquei sabendo um pouco sobre a sua figura irreverente e da existência de sua obra obscena, o que despertou minha curiosidade. A música de Caetano Veloso, Triste Bahia, despertou em mim sentimentos melancólicos e uma sensibilidade barroca, ou poética, porque as palavras do poema são muito sonoras. ;Triste Bahia, ó quão dessemelhante estás e estou do nosso antigo estado....; Isso soava maravilhosamente nos meus ouvidos. A partir do sonho, escrevi o livro.
Quanto tempo foi necessário para escrever Musa praguejadora? Pode falar um pouco sobre a pesquisa necessária para escrever o livro? Como e onde foi feita? Quais foram os trechos mais difíceis?
Em poucos meses eu escrevi as 550 páginas da biografia, como se todo o livro já estivesse dentro de mim. Mas não estava, no romance eu abordei só um breve período da vida do Gregório, que foi o tempo do governador tirânico, Braço de Prata, um dos menos documentados em sua vida. Então, precisei realizar uma vasta pesquisa, mas eu já tinha parte do material, e tinha a memória da convivência com o personagem e com o período. A pesquisa foi feita em livros, como os de Pedro Calmon, ou os importantes opúsculos de Fernando da Rocha Peres, há uma bibliografia no final da Musa Praguejadora. Mas, essencialmente, as informações mais importantes para mim foram os poemas atribuídos a Gregório, que são também crônicas dos costumes coloniais e de sua própria vida.
Por que a opção por trechos romanceados? A falta de informações disponíveis foi decisiva para optar por esses trechos?
Os trechos romanceados, que estão em itálico no livro, nasceram naturalmente, acho que porque sou romancista e é como sei melhor me expressar. São apresentados em forma de ficção, mas respeitam os dados históricos. Não há invenção, como no romance. Quase sempre, eles abrem uma narrativa documental. Têm a função de desvendar aspectos do tema que os documentos sugerem.
Sair do romance histórico para a biografia é um caminho natural? Em qual gênero você se sente, afinal, mais confortável?
Não, não é um caminho natural. Sou romancista, e os romancistas escrevem romances. Mas recebi a proposta de escrever uma biografia, e escolhi o Gregório de Matos, como se fosse um reencontro com o meu amigo. Escrever uma biografia é bem menos complexo do que escrever um romance. Mas me sinto mais confortável no romance, na ficção, pelo sentimento de que estou na minha verdadeira seara.
Quais as dificuldades e quais as alegrias de reconstituir a vida na Bahia do século 17?
Não é uma biografia acadêmica, em que é preciso se provar verdades. Passei por dificuldades, dilemas, dúvidas, perguntas sem resposta. Mas a própria história, as poesias, o próprio material foi decidindo o destino do livro. O tom foi de alegria, pois o livro é um passeio pela Bahia colonial, por Angola, Portugal e Recife, de mãos dadas com o inquietante, sedutor, arriscado poeta. Falo muito mais dos costumes, do cotidiano, das dores e alegrias, dos amores e alcovas, do pitoresco, do curioso, e mesmo dos sentimentos, que são descritos nos poemas. Fiz o que sei fazer.
Como foi feita a pesquisa iconográfica para ilustrar o livro?
Foi encomendada à Anna Dantes, dona da editora Dantes e uma maravilhosa designer de livros. A capa está tão linda e atraente! Ela teve muitas dificuldades, mas conseguiu imagens novas, muitas delas inéditas nos livros dos nossos historiadores. Ela escolheu aplicar desenhos meus sobre as gravuras antigas, com o sentido muito adequado de repetir em imagens o que acontece no texto do livro: a impressão de minha personalidade sobre informações históricas.
Boca do inferno vendeu mais de 40 mil exemplares. Você acha que há um interesse especial pela vida de Gregório de Matos? Por quê? Seria ele o poeta cuja biografia mais desperta a curiosidade dos leitores?
Sim, Boca do Inferno vendeu muito bem, logo no primeiro ano, foi uma surpresa editorial, um fenômeno raro na literatura. Hoje, continua sendo lido e adotado em escolas, os exemplares vendidos estão em seis dígitos. Acho que foi resultado de um pequeno texto na primeira página do JB, muito entusiasmado, dizendo que o livro era uma joia rara, e as pessoas gostam quando lhes indicam o que é bom. O caderno Ideias dedicou ao livro seis páginas, e outros jornais, páginas inteiras. Os leitores compraram, e o livro caiu no gosto geral, ainda hoje é o meu livro mais vendido, e ainda há ecos apaixonados dessa leitura. Mas, evidente, nada disso teria acontecido se o poeta Gregório de Matos não fosse tão eletrizante, e se sua biografia não despertasse tanta curiosidade. Conhecer Gregório de Matos é conhecer o Brasil.
Daniel Aarão Reis é professor do departamento de história da Universidade Federal Fluminense (UFF) e quis escrever a biografia de Prestes sem cair em extremos como transformar o personagem em santo ou demônio. Fez uma biografia equilibrada que conta um trecho importante da história do Brasil e investiga a vida de um doas mais longevos políticos brasileiros.
Que aspecto da personalidade de Prestes o senhor destacaria?
A fidelidade às convicções. Nunca se deixou intimidar pela corrente em sentido contrário. Sempre que preciso, e à sua custa, nadou contra ela. Bateu muita cabeça nas paredes da vida. Mudou muitas vezes de ideia (só não muda de ideias quem não tem ideias), mas nunca se prestou a defender ideias que não tinha. E também nunca mudou de ideias por imposição dos poderosos do momento. Como carecemos hoje de homens e mulheres de convicções...
Prestes é uma figura que provoca sentimentos extremos ao ser descrito ora como heroi, ora como demônio. O senhor conseguiu encontrar um Prestes que não fosse nem heroi nem demônio?
Fiz o possível para evitar a hagiografia e a demonização. Analisar o personagem em suas contradições, limites e contextos históricos. Optei por uma narrativa densa, não isenta de ângulos questionadores ou críticos, mas preferindo deixar o leitor com opções para extrair as próprias conclusões. É provável que o livro não agrade aos que detestam e aos que celebram acriticamente Prestes. Paciência. Não fiz o livro pensando nestes, mas num público amplo, para que conheça um dos mais interessantes personagens da história república. Perdeu quase todas as batalhas em que se empenhou. Entretanto, muitas vezes, as trajetórias dos derrotados têm muito a elucidar sobre a sociedade que os rejeitou.
Houve alguma dificuldade em relação à família de Prestes e às autorizações que a lei brasileira exige para a publicação de biografias?
A maioria dos familiares contribuiu, com destaque para Maria Ribeiro, segunda mulher e mulher da vida de Prestes (permaneceram juntos durante 38 anos). Também muito me ajudaram vários filhos e filhas de Maria (Paulo Ribeiro, Yuri Ribeiro, Mariana, Rosa, Ermelinda e Zoia Prestes). A filha mais velha de Prestes, Anita (resultado da união com Olga Benário) não seachou à vontade para contribuir. Mas muito aproveitei suas obras ereflexões a respeito da trajetória de Prestes.Tenho a satisfação de registrar que, até o momento, não houve questionamentos judiciais, nem recursos a legislações anacrônicas editoriais. Que assim seja. Melhor para todos e, em especial, melhor para o público leitor.
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