Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Fotógrafo Maurício Lima humaniza a realidade de guerras

Mesmo em meio ao caos de conflitos bélicos pelo mundo, é possível ver humanidade nas fotografias do brasileiro



Como e quando você começou a direcionar seu trabalho para os conflitos?
Isso tomou um rumo na minha carreira a partir de uma ocupação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto em um terreno em São Bernardo do Campo (SP), em 2001. Tinha cerca de 5 mil famílias nas margens da rodovia Anchieta. Naquela ocupação, um fotógrafo que morreu, não se sabe a causa, mas aquilo mexeu um pouco comigo. Mas outro fator predominou. Foi o primeiro contato real que tive com famílias que sofrem com o deficit habitacional no Brasil. Vendo aquelas pessoas lá, colocava-me na situação delas. Era algo paralelo. Doeu acompanhar o drama. Consegui trabalhar naquela história até o fim, até o momento da reintegração. Foi um trabalho que teve grande repercussão e que me levou a conhecer Gabriel García Marquez.

Como foi esse encontro com o escritor?
Uma das recomendações que ele me deu foi para nunca deixar de iluminar as pessoas esquecidas pela sociedade. Isso teve um significado especial, deu um norte para decidir o que realmente gostaria de fazer. Até então era algo superficial e passageiro. Não me interessava. Quando surgia oportunidades para trabalhar o lado social, conseguia ver que ali existia o interesse.

Qual foi o primeiro conflito que você fotografou? Você se lembra de como se sentiu quando surgiu a oportunidade de fotografar pela primeira vez em uma zona de guerra?
A guerra do Iraque começou em abril de 2003. No fim do ano, fui para lá. Fiquei lá por três meses. Tive a chance de fazer uma história legal com um menino chamado Ayadi. Ele foi ferido em um bombardeio feito pelos EUA durante a invasão. Encontrei-o em Bagdá, perto da Zona Verde. O pai queria que ele fizesse tratamento para a córnea, mas não tinha condições de pagar. Consegui autorização para acompanhá-lo por alguns dias. Isso era bem difícil e perigoso por envolver várias questões, como segurança, não saber falar árabe, ter mulheres na casa e estrangeiro não poder ter contato. Tive que aceitar e respeitar para, de alguma forma, ajudar o menino. Foi muito especial esse encontro, principalmente na hora de me despedir. Comunicava-me com eles por mímica. O pai dele me recebeu de uma forma única. O afeto da família me fez esquecer o perigo que representava estar naquele vilarejo, na região da Babilônia. É uma história difícil de esquecer, que teve uma repercussão boa, mas só fiquei sabendo dois anos depois. As fotos foram publicadas no Washington Post, e uma família americana ficou comovida com a situação dele e o levou para os EUA para tratar. Isso serviu de inspiração e de motivação para continuar. Quero voltar para reencontrá-lo.



Em 2014, na Ucrânia, suas fotos tiveram grande repercussão. Uma delas salvou a vida de Irina Dovgan;s. Como tudo aconteceu?
Nunca pensei em ver em Donetsk alguém enrolado na bandeira da Ucrânia, porque a cidade é controlada pelos rebeldes pró-russos. Percebi que havia algo de estranho quando desci do carro. Consegui me aproximar. Os milicianos que controlavam o posto de fiscalização ali perto me deixaram ficar. A situação era de deboche e humilhação. O repórter que estava comigo conseguiu decifrar o que estava escrito no cartaz que ela segurava: ;Ela mata nossas crianças;. Algumas pessoas passavam e a xingavam. Tinha restos de tomate pelo corpo. Nos 10 minutos que consegui ficar, fiz as fotos. Foram poucas, mas o suficiente para ajudar a vida de uma pessoa. Ela era acusada de ajudar o exército ucraniano. Isso foi o motivo para a prenderem e expô-la. A matéria foi publicada e teve uma repercussão imediata. Houve uma negociação e em menos de 24 horas ela foi liberada. Conseguimos entrevistá-la. No começo, ela não conseguia falar direito, porque estava muito emocionada. Ela me agradeceu e disse que as fotos salvaram a vida dela. O caso tomou uma proporção tão grande que ela se candidatou às eleições parlamentares. Quando ela dá entrevista, sempre cita o fotógrafo que apareceu na vida dela. Fico feliz por ter cumprido o meu papel. Não disse na época, porque não tive oportunidade, que se tivesse acontecido como ativista pró-Rússia, a minha reação seria a mesma.

Do que você tem mais medo?
Intolerância. Individualismo. Isso pode ter um impacto negativo nas futuras gerações. O modo que as pessoas vivem hoje, a maneira com que se comunicam, onde tudo é efêmero, me assusta. Até na própria fotografia. Não consigo ver foto no celular. Não é a plataforma ideal. Apesar de não ser tão velho, ainda prefiro ir a uma exposição ou museu e ver a foto no papel, livro. Faço parte de uma geração, talvez a última, que trabalha com filme na imprensa. No início da carreira, o contato com o filme no laboratório era muito mágico. Hoje, você tira uma foto com o telefone e publica. Talvez mais de mil pessoas vejam. Existe um vício.