postado em 11/01/2015 08:02
O brasileiro Mauricio Lima, 39 anos, é considerado um dos 10 melhores fotógrafos do mundo pela revista Time. A carreira foi construída a partir do respeito e da compaixão com que olha através das lentes. Desde 2001, Mauricio documenta questões sociais e conflitos bélicos, além dos projetos paralelos. O fotógrafo realizou trabalhos únicos em países como Afeganistão, Iraque, Israel, Líbia, Portugal e regiões palestinas. São 15 anos contando histórias por meio de imagens. Nos últimos meses, suas fotos da guerra na Ucrânia estamparam a capa do The New York Times. As fotografias tem sido publicadas nos principais veículos editoriais do mundo, como Time, The New York Times Magazine, Der Spiegel, Paris Match, Le Monde, entre outros, e entidades como ONU, Unicef e Unidir.
Quando começou a se interessar por fotografia?
Foi na época da faculdade que tomei a decisão. Desde criança, sempre fui fascinado por imagem e tinha uma grande vontade de poder descobrir aquele mundo por trás das fotos que via. Quando decidi realmente o que gostaria de fazer na vida, tinha um conflito entre fotografia e culinária. Gostava muito de cozinhar, mas tive que escolher se comprava uma câmera ou fazia um curso de gastronomia fora do Brasil. Achei que poderia ser mais interessante optar pela fotografia por causa da amplitude que tem. Conseguiria alcançar um número maior de pessoas como fotógrafo, enquanto na gastronomia apenas um grupo mais seleto.
Por que não gosta de se definir como fotógrafo de guerra?
Não gosto de rótulo. Existe também a história de que quem faz esse tipo de trabalho tem certo glamour. Não tem glamour algum. Passar por determinadas situações reais em que as pessoas conseguem ver ou idealizar por um filme é diferente. Você se priva praticamente de tudo que uma vida normal pode lhe oferecer, e ainda por um período indeterminado. Às vezes, você volta no tempo, como se vivesse em outra era, porque fica privado de água e de recursos básicos. É óbvio que depende muito do resultado final do trabalho e qual canal de comunicação isso vai tomar. Se você faz um trabalho para uma publicação pequena e um país de pouca relevância política e econômica, isso tem um impacto. Se você trabalha com um pouco mais de liberdade, por um período maior que lhe possibilita pensar, sem a pressão que existe hoje por causa da internet, também gera outro impacto. Na verdade, penso na fotografia como um ponto final em um livro.
Como assim?
Sou fascinado por contar histórias. Se eu me propus a isso, tenho que estar ciente do que com que vou me deparar. Não posso tornar isso motivo de glamour, status, ou tirar proveito de situações em que morre muita gente. Respeito todas as outras opiniões e tenho amigos que trabalham de maneira diferente. Essa pluralidade é o que faz com que as pessoas tenham melhor discernimento. Não vejo essa questão de fotógrafo disso ou daquilo como um ponto principal sobre o que a pessoa é. É delicado isso. Pelo fato do risco, acredito que o trabalho toma outra proporção por ser um pouco atípico. A terminologia ;fotógrafo de guerra; dá falsa impressão de que o profissional só atua em momento de conflitos, que fica esperando algo ruim acontecer para que possa sair da sua zona de conforto. Está longe disso. Faço outros tipos de trabalho, mas que envolvem o ser humano. Talvez esse seja o ponto que mais me incomoda.
Como e quando você começou a direcionar seu trabalho para os conflitos?
Isso tomou um rumo na minha carreira a partir de uma ocupação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto em um terreno em São Bernardo do Campo (SP), em 2001. Tinha cerca de 5 mil famílias nas margens da rodovia Anchieta. Naquela ocupação, um fotógrafo que morreu, não se sabe a causa, mas aquilo mexeu um pouco comigo. Mas outro fator predominou. Foi o primeiro contato real que tive com famílias que sofrem com o deficit habitacional no Brasil. Vendo aquelas pessoas lá, colocava-me na situação delas. Era algo paralelo. Doeu acompanhar o drama. Consegui trabalhar naquela história até o fim, até o momento da reintegração. Foi um trabalho que teve grande repercussão e que me levou a conhecer Gabriel García Marquez.
Como foi esse encontro com o escritor?
Uma das recomendações que ele me deu foi para nunca deixar de iluminar as pessoas esquecidas pela sociedade. Isso teve um significado especial, deu um norte para decidir o que realmente gostaria de fazer. Até então era algo superficial e passageiro. Não me interessava. Quando surgia oportunidades para trabalhar o lado social, conseguia ver que ali existia o interesse.
Qual foi o primeiro conflito que você fotografou? Você se lembra de como se sentiu quando surgiu a oportunidade de fotografar pela primeira vez em uma zona de guerra?
A guerra do Iraque começou em abril de 2003. No fim do ano, fui para lá. Fiquei lá por três meses. Tive a chance de fazer uma história legal com um menino chamado Ayadi. Ele foi ferido em um bombardeio feito pelos EUA durante a invasão. Encontrei-o em Bagdá, perto da Zona Verde. O pai queria que ele fizesse tratamento para a córnea, mas não tinha condições de pagar. Consegui autorização para acompanhá-lo por alguns dias. Isso era bem difícil e perigoso por envolver várias questões, como segurança, não saber falar árabe, ter mulheres na casa e estrangeiro não poder ter contato. Tive que aceitar e respeitar para, de alguma forma, ajudar o menino. Foi muito especial esse encontro, principalmente na hora de me despedir. Comunicava-me com eles por mímica. O pai dele me recebeu de uma forma única. O afeto da família me fez esquecer o perigo que representava estar naquele vilarejo, na região da Babilônia. É uma história difícil de esquecer, que teve uma repercussão boa, mas só fiquei sabendo dois anos depois. As fotos foram publicadas no Washington Post, e uma família americana ficou comovida com a situação dele e o levou para os EUA para tratar. Isso serviu de inspiração e de motivação para continuar. Quero voltar para reencontrá-lo.
Em 2014, na Ucrânia, suas fotos tiveram grande repercussão. Uma delas salvou a vida de Irina Dovgan;s. Como tudo aconteceu?
Nunca pensei em ver em Donetsk alguém enrolado na bandeira da Ucrânia, porque a cidade é controlada pelos rebeldes pró-russos. Percebi que havia algo de estranho quando desci do carro. Consegui me aproximar. Os milicianos que controlavam o posto de fiscalização ali perto me deixaram ficar. A situação era de deboche e humilhação. O repórter que estava comigo conseguiu decifrar o que estava escrito no cartaz que ela segurava: ;Ela mata nossas crianças;. Algumas pessoas passavam e a xingavam. Tinha restos de tomate pelo corpo. Nos 10 minutos que consegui ficar, fiz as fotos. Foram poucas, mas o suficiente para ajudar a vida de uma pessoa. Ela era acusada de ajudar o exército ucraniano. Isso foi o motivo para a prenderem e expô-la. A matéria foi publicada e teve uma repercussão imediata. Houve uma negociação e em menos de 24 horas ela foi liberada. Conseguimos entrevistá-la. No começo, ela não conseguia falar direito, porque estava muito emocionada. Ela me agradeceu e disse que as fotos salvaram a vida dela. O caso tomou uma proporção tão grande que ela se candidatou às eleições parlamentares. Quando ela dá entrevista, sempre cita o fotógrafo que apareceu na vida dela. Fico feliz por ter cumprido o meu papel. Não disse na época, porque não tive oportunidade, que se tivesse acontecido como ativista pró-Rússia, a minha reação seria a mesma.
Do que você tem mais medo?
Intolerância. Individualismo. Isso pode ter um impacto negativo nas futuras gerações. O modo que as pessoas vivem hoje, a maneira com que se comunicam, onde tudo é efêmero, me assusta. Até na própria fotografia. Não consigo ver foto no celular. Não é a plataforma ideal. Apesar de não ser tão velho, ainda prefiro ir a uma exposição ou museu e ver a foto no papel, livro. Faço parte de uma geração, talvez a última, que trabalha com filme na imprensa. No início da carreira, o contato com o filme no laboratório era muito mágico. Hoje, você tira uma foto com o telefone e publica. Talvez mais de mil pessoas vejam. Existe um vício.