Fosse sensibilizada por crianças "que nunca tinham tomado leite" (realidade
presenciada nos bastidores de O dragão da maldade contra o santo guerreiro) ou
no repertório das palavras para os causos descritos, onde embutia "seios",
"ocasião" e "lisonjeada" (no lugar de peitos, momento e reconhecida), Odete
Lara encerrava a aura de dama. Tanto que, incomodada pelo andamento do cinema,
apegado à violência e ao sexo, a paulista Odete Righi optou por se recolher.
Num sítio em Nova Friburgo (RJ), desde 1976, Odete, porém, teve que migrar, por
motivos pessoais, para o Flamengo. Indisposta com a fama, potencializada no
começo dos anos de 1960, uma das mais exuberantes divas do cinema conhecia
sua magnitude, mas tinha os pés no chão. "Cada átomo da gente interfere em tudo",
disse, há quatro anos, num tom que acusava a singeleza de convicta zen-budista.
Foi assim, inesperadamente reavivada, com retrospectiva de 16 filmes no
Centro Cultural Banco do Brasil, que, em maio de 2011, a doce cabresto, uma
contrariada Odete Lara deu a última entrevista ao Correio. Desimportante de si,
queria entender como haviam feito "um negócio desses" (montar a mostra) com ela.
Há 33 anos, estava longe do showbiz no qual firmou amizades com Glauber Rocha,
Vinicius de Moraes, Cacá Diegues (com quem fez Os herdeiros, em 1970) e Nelson
Pereira dos Santos (de Boca de ouro).
Intimidada pelo palco, 'the actress' (como gostou de ser chamada, meio incógnita,
em temporada pelos EUA) teve montagens, pelo Teatro Brasileiro de Comédia.
Mesmo lembrada nos palcos, desde Santa Marta Fabril S/A (1955), Odete não sentia
aquele terreno como dela. "É um trabalho muito penoso", assegurou.
Esquecida (em termos de memórias), na conversa, se provou inesquecível, ao
falar de êxitos como em A estrela sobe (de Bruno Barreto) e
dos dois rebentos, feitos ao lado do ex-marido Antônio Carlos da Fontoura:
Copacabana me engana (1969) e Rainha diaba (1974). Ela, que não teve filhos,
não demonstrou maiores desgostos com a solidão da velhice. "Tudo pra mim
é bonito, valioso", fez questão de enfatizar a senhora que lidou, muito jovem,
com o duplo suicídio dos pais.
Desde os tempos de modelo, como figura de ponta no primeiro desfile de moda
do Museu de Arte de São Paulo, Odete Lara resplandeceu a beleza emprestada
para novelas como Em busca da felicidade, As bruxas e A volta de Beto Rockfeller.
Enquanto alguns se derreteram pela beleza morena de Norma Benguell, parceira
dos filmes Noite vazia (1964) e Mulheres e milhões (1961).
Com uma tumultuada cinebiografia levada às telas, em vida, a atriz não teve apetite
pelo que fosse óbvio: esteve na fita de Dercy Gonçalves O gato da madame (1956),
batalhou por Vai trabalhar, vagabundo, ao lado de Hugo Carvana, e
se eternizou (mesmo com 1,62m), erotizada, em Bonitinha, mas ordinária (1963).
Já havia se "fartado de tudo", quando se arriscou na escrita dos livros Eu nua,
Minha jornada interior e Meus passos em busca de paz. Reverberava a mulher intensa
que me esclareceu parte do agigantamento, em cena: "Sempre representei, dando-me,
inteiramente".