Num ano de poucas unanimidades de excelência estética no cenário dos maiores festivais internacionais de cinema, uma produção sul-americana, o drama social La Patota, fruto de um casamento criativo entre a Argentina e o Brasil, saiu de Cannes, na França, com aplausos em coro e dois prêmios: o Grand Prix da Semana da Crítica e a láurea da Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica (Fipresci). Ambas as vitórias fizeram do longa-metragem, dirigido por Santiago Mitre ; e coproduzido pela VideoFilmes de Walter Salles ;, o filme latino-americano mais comentado (e disputado) do momento, ampliando a visibilidade e o prestígio mundial do celeiro audiovisual argentino. Mitre arrepiou Cannes com a trama (inspirada no clássico longa La patota, dirigido por Daniel Tinayre em 1960) sobre uma advogada, Paulina (vivida por Dolores Fonzi), que opta por trabalhar como professora em uma região carente e, lá, torna-se vítima de um estupro, mas não abre mão de seus ideais, apesar da violência. Em sua terra natal, La Patota chega às telas no próximo dia 18 e já há um convite para Mitre exibi-lo em competição no 43; Festival de Gramado (de 7 a 15 de agosto). Nesta entrevista exclusiva, o cineasta de 34 anos, que fez fama como roteirista, fala do sucesso, de política e dos novos rumos cinéfilos de sua pátria.
Em La Patota, a saga da advogada que se torna professora num vilarejo pobre, e não se rende à violência local, traz uma carga política de alta tensão em sua reflexão sobre exclusão econômica e o sucateamento financeiro de pequenas vilas do interior da América do Sul. Como você vê a dimensão política do seu cinema, que já se fazia notar em seu primeiro longa como diretor, O estudante, de 2011?
Seria difícil, pra mim, estabelecer um vínculo direto com a tradição do chamado ;cinema político;. Talvez a melhor resposta que possa te dar seja o fato de que tento usar a ficção para investigar uma determinada realidade com um realismo quase documental. Quero fazer ficções que documentem mundos e façam pensar. Talvez eu tenha uma vocação para temas políticas não consciente por uma relação familiar. Meu bisavô foi ministro na Argentina dos anos 1930, meu avô trabalhou com o governo de Perón e os meus pais foram militantes que sempre falaram de questões de governo conosco. Talvez isso se reflita no que eu filmo. Não saberia avaliar o que há de autoral no meu cinema nem se sou um diretor-autor, mas sei que La Patota e O estudante se aproximam na maneira em que falam sobre compromissos políticos individuais.
O que seriam esses ;compromissos políticos; e como eles refletem questões da Argentina de hoje?
O estudante falava sobre um jovem alienado, sem interesse profissional algum, que encontra na política estudantil um lar e uma missão, até ser desiludido por esse ambiente. La Patota, pelo contrário, é sobre uma mulher plena de convicções ideológicas que se afoga num universo de alienação. Mas nenhum dos dois abre mão da ideologia, do compromisso. Ao falar sobre personagens como esses, eu tenho margem para levantar uma discussão sobre impunidade, que é o tema essencial a quem quer entender o papel da Justiça na América Latina. Na Argentina, a marginalidade se manifesta de muitas formas. E, para entendê-la, eu preciso radiografar o mundo à minha volta. No cinema que eu faço, o ambiente, o cenário, é tão importante quanto as pessoas de que falo.
O sucesso de Relatos selvagens, em 2014, fazendo rir ao falar sobre violências cotidianas, quebrou algo que parecia um paradigma do cinema argentino: a obsessão dos filmes de seu país em falar sobre sequelas da ditadura. O que o jugo militar ainda representa para o cinema da Argentina?
Esse interesse pelo tema vem das décadas de 1980 e 1990, quando tudo, no cenário da arte na Argentina, ocupava-se em saldar dívidas da ditadura, entender as feridas que o regime militar deixou. Nos anos que se seguiram, apareceu uma nova geração, da qual fazem parte Lucrecia Martel (O pântano), Lisandro Alonso (Jauja), Adrián Israel Cateano (Crônica de uma fuga) e Pablo Trapero (Leonera), trazendo uma nova estética e propondo novas investigações temáticas. Foi uma ruptura com a tradição e eu sou fruto dessa mudança, tendo trabalhado como roteirista de Trapero várias vezes. Meu aprendizado como realizador se deu em paralelo à educação visual que tive com esses diretores.
A matéria completa está disponível , para assinantes. Para assinar, .