"Desde os tempos da caverna, fazemos silêncio para escutar aquele que melhor contasse a história. Aquela pessoa que contasse com tal emoção que evocava nossa imaginação. Esse contador primitivo tinha o poder de distrair e seduzir;, explica Therezamaria Lucciola Campos, uma das maiores e mais experientes contadoras de histórias de Brasília. Formada em história, ela discorre sobre os primórdios da prática, demonstrando como, ao longo dos séculos, a arte de contar histórias foi se modificando, mas sem perder a essência: provocar a imaginação e a inquietação.
;Ninguém escapa de uma história bem contada;, Therezamaria continua. Ainda resgatando os diferentes períodos da prática, ela lembra que, antigamente, aquelas pessoas que eram capazes de memorizar relatos e que possuíam vocação para a oralidade detinham o poder de conduzir e influenciar aos outros. ;Eles (os contadores de histórias) eram as únicas fontes de informações. Transmitiam pela oralidade, coisas que ouviram de seus ancestrais. Era preciso desenvolver o poder da guarda de memórias.; Com o surgimento da escrita, a valorização da memória teve queda abrupta, pois não era mais primordial para que histórias fossem repassadas às pessoas.
Então, a figura do contador de histórias se adapta às novas circunstâncias que lhe foram impostas pela evolução da escrita e da imprensa. ;Hoje, nós contadores, somos o livro vivo. Somos multiplicadores, promotores da leitura, pesquisadores;, argumenta Therezamaria.
[SAIBAMAIS]Quando questionada sobre como surgiu o interesse pela contação de histórias, ela recorda que, desde a infância, os livros lhe chamavam a atenção. ;Sempre fui uma criança leitora, mesmo havendo poucos livros infantis na minha época. Depois disso, ainda cercada por livros, veio a graduação em história. ;Trabalhei 25 anos como professora, 10 dando aulas e o restante dentro da biblioteca. Militei a vida inteira contando histórias. Somos todos contadores, desde o dia que nascemos;, afirma.
Enquanto relembra o passado, Therezamaria puxa duas ou três histórias de Eduardo Galeano para retratar o sentimento da contação de histórias. As mudanças na voz e na dicção dão conta da experiência da ex-professora, que relata com emoção aquilo que tem sido a profissão nas últimas décadas. ;Você não ficou interessadíssimo na história do Galeano? A história é o livro da criança que ainda não sabe ler, faz com que jovens e adultos saiam do cotidiano, da realidade. Eu mesma, enquanto lia para você, esqueci das coisas que estavam acontecendo.; A respeito do que mudou ao longo de tantos anos de prática e de como um contador permanece estimulado a continuar, Therezamaria responde: ;A contação de histórias me deu aconchego, amparo. É o que me retira desse cotidiano estressante;, conta.
"Contar é diferente de ler"
Maristela Papa e seu marido, William Reis, fazem parte da Associação Amigos das Histórias, em Brasília, onde são ministrados cursos de capacitação para novos contadores de histórias, além de promover a prática em orfanatos, asilos, hospitais, parques e outros. Ela afirma que a contação de histórias permite a interação com diversas linguagens, o que colabora para que a atividade se reinvente ao longo dos anos. ;Existem vários espaços de atuação. Nós intercalamos as histórias com músicas, utilizamos figurinos especiais, iluminação, cenário. Tudo isso colaborou para que a contação virasse um espetáculo.;
No entanto, Maristela, que possui graduação em teatro e foi aluna de Dulcina de Moraes, faz questão de separar os dois tipos de linguagem. ;Acredito que exista uma diferença entre contar e representar. No teatro, você não interage muito com o público. Na contação, você é muito íntimo. Os recursos são importantes, mas não fundamentais. Nós temos o livro como esqueleto, mas temos nosso jeito de contar, não é o livro cuspido para o público;, explica. Com 47 contadores associados, Maristela afirma que a contação de histórias e participação em cursos de formação ajudam as pessoas a melhorar em outros setores da vida pessoal e profissional.
;O que mais me encanta ao formar novos contadores é ver o crescimento das pessoas. O meu crescimento é ver o crescimento deles. Certa vez, recebemos uma professora de química, a Ivete, que queria mudar as aulas, pois era muito fechada. Ela veio com esse objetivo e hoje foi convidada para deixar a sala de aula e tocar um projeto na biblioteca e contar histórias para toda a escola;, conta Maristela. Após 20 anos na função, ela afirma que não se vê mais sem a contação. ;Hoje, vivo em um mundo à parte dos demais. Não me aposentaria disso;, conta.
47
Número de membros da Associação Amigos das Histórias
As novas e velhas gerações
Desde os 9 anos de idade, Maria Fernanda teve o interesse despertado pela contação de histórias. Hoje, aos 14, a jovem entusiasta explica que a prática está ;definitivamente nos planos; de carreiras a serem seguidas. ;Sempre gostei muito de teatro, queria ser atriz. Um dia me convidaram para contar uma história e gostaram muito. Desde então, não parei;, conta. Maria Fernanda explica que a contação a ajudou na vida social, pois sempre foi uma criança muito tímida. ;Hoje em dia, eu me abro mais, minha voz melhorou muito, consigo me expressar melhor e sou mais confiante.;
Talvez o dia mais marcante da pequena contadora tenha sido uma experiência na Feira Literária de Brasília, no ano passado. ;Era minha vez de contar uma história e não tinha ninguém para ver. Então, quando eu comecei a contar, mais pessoas iam chegando. Foi lotando e lotando e eu me perguntava ;o quê que estou fazendo?; Fiquei muito surpresa;, lembra, entusiasmada. Atualmente, Maria Fernanda é cadastrada oficialmente como contadora de histórias e se apresenta perante públicos de todas as idades.
Narrativa
Martha Teixeira, psicóloga e contadora de histórias, conta que a prática pode ajudar no desenvolvimento do bem-estar na saúde. ;As histórias são como espelhos da alma humana. Ao escutar uma narrativa, nós entramos nela. Expomos sentimentos, emoções. É uma troca permanente entre o contador, a história e o ouvinte;, explica.
Desde cedo influenciada pelos avós e outros membros da família, Martha afirma, que, atualmente, a contação de histórias desempenha um papel fundamental na retomada das relações interpessoais e de autoexpressão do indivíduo. ;No ritmo que estamos vivendo, não há tempo de viver isso de uma forma profunda. As pessoas já não se veem mais, não conversam. Há a necessidade de escutar, de ser escutado. A contação de histórias é emergente por cumprir esse papel. As pessoas não podem deixar de narrar a própria história.;
Carla Farias está no ofício há mais de 30 anos e afirma que é difícil precisar o momento exato no qual se interessou pela atividade. ;Não sei dizer quando surgiu essa vontade, é algo que vem de dentro. Quando eu era bem nova, por volta dos 10 anos, chamava crianças que estavam na rua para minha casa e contava histórias para elas.; Carla também defende que, nos tempos atuais, o contato entre as pessoas tem se perdido e que a contação pode auxiliar a retomada das relações. ;Todos estão introspectivos, com celulares e internet. Precisamos desse resgate. Por meio da contação de histórias, me sinto realizada. É quando as pessoas me olham, demonstram afetividade. É quando dou o meu toque.;