Diversão e Arte

Mostra traz loucura de Darcílio Lima, em obras quase desconhecidas

Diagnosticado com psicopatia, artista cearense foi um desenhista genial

Nahima Maciel
postado em 09/07/2015 07:30

Seres bizarros e surreais são comuns na obra do artista
Darcílio Lima poderia ter sido consumido pela loucura, mas inventou o caminho inverso e consumiu, ele mesmo, a própria loucura. Nascido em Cascavel (CE) em 1944 e de origem humilde, Darcílio se tornou uma das revelações da arte brasileira em um campo que teve expoentes como Arthur Bispo do Rosário e Emygdio de Barros, mas permaneceu desconhecido de boa parte do público. O curador e marchand Afonso Henrique Costa não se conformava com a ideia de ver o nome do artista no limbo e resolveu organizar a exposição Darcílio Lima: um universo fantástico, reunião de 65 trabalhos do artista em cartaz na Caixa Cultural. Autor de um mundo no qual símbolos sagrados convivem com imagens profanas e seres bizarros tomam formas antropomórficas, Darcílio chegou a ser classificado de surrealista, mas é para além desse gênero que Afonso propõe estender o olhar.

Darcílio mudou-se para o Rio de Janeiro aos 18 anos. Diagnosticado como psicopata, começou um tratamento na Casa das Palmeiras, instituição psiquiátrica então dirigida por Nise da Silveira e na qual conheceu artistas como Ivan Serpa, Almir Mavignier e Abraham Palatnik. Serpa dava aulas de arte no Museu de Arte Moderna (MAM) e levou Darcílio para o curso. Foi um passo tão importante que catapultou o artista para a cena carioca. A obsessão com a qual produzia belíssimos desenhos, a técnica do pontilhismo trabalhada à exaustão, as composições rendadas construídas a bico de pena e, sobretudo, o universo alucinante do cearense fascinaram Serpa, que acabou por convidá-lo para dividir o ateliê e a casa na qual morava com a família. ;O Serpa reconheceu o potencial e entendeu que podia levá-lo a outro patamar;, conta Affonso, que conheceu o artista durante as aulas no MAM.

O universo mágico e detalhado de Darcílio Lima é povoado por uma fauna especial

A doença e a escassez de recurso fizeram Darcílio viver na sarjeta por muito tempo, mas quando começou a dividir o ateliê com Serpa, começou também a produzir regularmente, a vender os trabalhos e a ter um pouco mais de estabilidade. Frequentada pela maior parte dos artistas cariocas, a casa de Serpa se tornou um porto seguro e uma plataforma de divulgação da obra do cearense. Mario Pedrosa escreveu sobre o trabalho e vários colecionadores compraram desenhos e gravuras do artista. Com Marcelo Grassman, Darcílio foi introduzido à gravura, técnica que rendeu alguns de seus melhores trabalhos. Em 1971, ele ganhou um prêmio viagem no 20; Salão Nacional de Arte Moderna do MAM/RJ e mudou-se para a Europa, onde passou três anos antes de voltar ao Brasil. Na volta, durante um surto, acabou por retornar ao Ceará, onde teria vivido como mendigo antes que o crítico Frederico Morais o trouxesse de volta ao Rio de Janeiro. ;A loucura no trabalho dele é construtiva, alimenta o trabalho, é fundamental;, explica Afonso.

Muitas vezes classificado como surrealista, o artista é autor de obra que vai além do gênero. Trabalhando na fronteira entre a realidade e a loucura, criou um universo povoado por um conjunto de seres antropomorfos, monstros com garras e dentes, pequeninas criaturas liliputianas e outras figuras de formatos eróticos (há muitos falos, vaginas e mamilos) em torno dos quais celebram-se orgias e surubas que lembram obras como O jardim das delícias, de Hieronymus Bosch. ;Em uma análise mais objetiva, ele seria um surrealista, embora não possa ser tachado apenas de surrealista;, avisa Afonso. A convivência entre o sacro e o profano ; porque há também muitos crucifixos, custódias e outros símbolos ; é típica da obra do artista. A loucura está presente, principalmente, na forma alucinada como Darcílio se dedicava às técnicas, mas também no universo fantástico povoado por uma animália muito forte.

Antropomorfismos são comuns na obra do artista

A qualidade técnica do desenho, muito requintado e limpo, é um detalhe que Afonso sempre aponta como curioso. ;Era um artista que morava na sarjeta e conseguia fazer um trabalho tão limpo!”, repara. ;A loucura alimentou o trabalho dele.; Darcílio morreu aos 46 anos, após cair de uma bicicleta e bater a cabeça. Durante os surtos, podia desaparecer, como aconteceu em uma ocasião que foi encontrado mendigando atrás de uma igreja em Cascavel. O teor altamente sexual do trabalho não se estendia à vida pessoal. ;Ele teve uma vida monástica;, conta Affonso. ;Não se conhece envolvimento dele com nenhum namorado ou namorada. Ele era assexuado. O sexo ficava no papel.; Conseguir reunir os 65 desenhos e gravuras expostos na Caixa foi tarefa de garimpeiro. Afonso descobriu apenas uma obra em instituição pública ; um desenho da coleção Gilberto Chateaubriand, guardada em comodato no MAM/RJ. Foi no acervo de Ivan Serpa, guardado pela família do artista, que encontrou uma quantidade suficiente de obras para montar uma exposição. A produção de Darcílio era lenta. Delicada e repleta de detalhes aos quais ele podia dedicar dezenas de horas, as obras levavam muito tempo para serem produzidas. ;Ele deixou uma obra pequena e foi difícil de encontrar. Não havia nada em museu;, avisa Affonso. ;A gente está redescobrindo um artista perdido e com um trabalho tão vigoroso, mas que estava no limbo.;

Darcílio Lima: um universo fantástico
Visitação até 21 de agosto, de terça-feira a domingo, das 9h às 21h, na Caixa Cultural Brasília, Galerias Piccola I e Piccola II (SBS ; Quadra 4 ; Lotes 3/4)

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