Darcílio Lima poderia ter sido consumido pela loucura, mas inventou o caminho inverso e consumiu, ele mesmo, a própria loucura. Nascido em Cascavel (CE) em 1944 e de origem humilde, Darcílio se tornou uma das revelações da arte brasileira em um campo que teve expoentes como Arthur Bispo do Rosário e Emygdio de Barros, mas permaneceu desconhecido de boa parte do público. O curador e marchand Afonso Henrique Costa não se conformava com a ideia de ver o nome do artista no limbo e resolveu organizar a exposição Darcílio Lima: um universo fantástico, reunião de 65 trabalhos do artista em cartaz na Caixa Cultural. Autor de um mundo no qual símbolos sagrados convivem com imagens profanas e seres bizarros tomam formas antropomórficas, Darcílio chegou a ser classificado de surrealista, mas é para além desse gênero que Afonso propõe estender o olhar.
Darcílio mudou-se para o Rio de Janeiro aos 18 anos. Diagnosticado como psicopata, começou um tratamento na Casa das Palmeiras, instituição psiquiátrica então dirigida por Nise da Silveira e na qual conheceu artistas como Ivan Serpa, Almir Mavignier e Abraham Palatnik. Serpa dava aulas de arte no Museu de Arte Moderna (MAM) e levou Darcílio para o curso. Foi um passo tão importante que catapultou o artista para a cena carioca. A obsessão com a qual produzia belíssimos desenhos, a técnica do pontilhismo trabalhada à exaustão, as composições rendadas construídas a bico de pena e, sobretudo, o universo alucinante do cearense fascinaram Serpa, que acabou por convidá-lo para dividir o ateliê e a casa na qual morava com a família. ;O Serpa reconheceu o potencial e entendeu que podia levá-lo a outro patamar;, conta Affonso, que conheceu o artista durante as aulas no MAM.
A doença e a escassez de recurso fizeram Darcílio viver na sarjeta por muito tempo, mas quando começou a dividir o ateliê com Serpa, começou também a produzir regularmente, a vender os trabalhos e a ter um pouco mais de estabilidade. Frequentada pela maior parte dos artistas cariocas, a casa de Serpa se tornou um porto seguro e uma plataforma de divulgação da obra do cearense. Mario Pedrosa escreveu sobre o trabalho e vários colecionadores compraram desenhos e gravuras do artista. Com Marcelo Grassman, Darcílio foi introduzido à gravura, técnica que rendeu alguns de seus melhores trabalhos. Em 1971, ele ganhou um prêmio viagem no 20; Salão Nacional de Arte Moderna do MAM/RJ e mudou-se para a Europa, onde passou três anos antes de voltar ao Brasil. Na volta, durante um surto, acabou por retornar ao Ceará, onde teria vivido como mendigo antes que o crítico Frederico Morais o trouxesse de volta ao Rio de Janeiro. ;A loucura no trabalho dele é construtiva, alimenta o trabalho, é fundamental;, explica Afonso.
Muitas vezes classificado como surrealista, o artista é autor de obra que vai além do gênero. Trabalhando na fronteira entre a realidade e a loucura, criou um universo povoado por um conjunto de seres antropomorfos, monstros com garras e dentes, pequeninas criaturas liliputianas e outras figuras de formatos eróticos (há muitos falos, vaginas e mamilos) em torno dos quais celebram-se orgias e surubas que lembram obras como O jardim das delícias, de Hieronymus Bosch. ;Em uma análise mais objetiva, ele seria um surrealista, embora não possa ser tachado apenas de surrealista;, avisa Afonso. A convivência entre o sacro e o profano ; porque há também muitos crucifixos, custódias e outros símbolos ; é típica da obra do artista. A loucura está presente, principalmente, na forma alucinada como Darcílio se dedicava às técnicas, mas também no universo fantástico povoado por uma animália muito forte.
A qualidade técnica do desenho, muito requintado e limpo, é um detalhe que Afonso sempre aponta como curioso. ;Era um artista que morava na sarjeta e conseguia fazer um trabalho tão limpo!”, repara. ;A loucura alimentou o trabalho dele.; Darcílio morreu aos 46 anos, após cair de uma bicicleta e bater a cabeça. Durante os surtos, podia desaparecer, como aconteceu em uma ocasião que foi encontrado mendigando atrás de uma igreja em Cascavel. O teor altamente sexual do trabalho não se estendia à vida pessoal. ;Ele teve uma vida monástica;, conta Affonso. ;Não se conhece envolvimento dele com nenhum namorado ou namorada. Ele era assexuado. O sexo ficava no papel.; Conseguir reunir os 65 desenhos e gravuras expostos na Caixa foi tarefa de garimpeiro. Afonso descobriu apenas uma obra em instituição pública ; um desenho da coleção Gilberto Chateaubriand, guardada em comodato no MAM/RJ. Foi no acervo de Ivan Serpa, guardado pela família do artista, que encontrou uma quantidade suficiente de obras para montar uma exposição. A produção de Darcílio era lenta. Delicada e repleta de detalhes aos quais ele podia dedicar dezenas de horas, as obras levavam muito tempo para serem produzidas. ;Ele deixou uma obra pequena e foi difícil de encontrar. Não havia nada em museu;, avisa Affonso. ;A gente está redescobrindo um artista perdido e com um trabalho tão vigoroso, mas que estava no limbo.;
Darcílio Lima: um universo fantástico
Visitação até 21 de agosto, de terça-feira a domingo, das 9h às 21h, na Caixa Cultural Brasília, Galerias Piccola I e Piccola II (SBS ; Quadra 4 ; Lotes 3/4)