Jacqueline Saraiva
postado em 21/07/2015 07:31
A evolução dos direitos das mulheres muçulmanas tem ocorrido, mesmo que a passos lentos, em vários países. Embora muitas práticas culturais sejam associadas ao modo como o Islã as trata, como casamentos forçados, mutilação genital, imposição de dotes para casamento, crimes de honra, estupro e tantos outros modos de violência, hoje muitas frequentam universidades, trabalham, dirigem e têm acesso a redes sociais. Até mesmo o uso do véu já faz parte de debates mais abertos e constantes. O papel de protagonista na história, que antes era apenas de homens e suas guerras por religião e poder, também passa a ser delas, seja na vida real ou nos livros, por conquistas simples, como o direito de estudar.Este cenário tem sido explorado por diversas escritoras, como fez a socióloga e psicóloga iraniana Parinoush Saniee. Quando começou a escrever o romance O livro do destino, que ganhou versão em português recentemente, ela conduziu uma pesquisa sobre as dificuldades enfrentadas pelas mulheres para se inserir na sociedade. Mas percebeu que um trabalho de pesquisa típico não faria justiça à realidade, já que o tipo de texto não era atraente. ;Decidi, pela primeira vez, que eu deveria colocar a caneta no papel, mas para escrever um romance e transmitir os resultados da minha pesquisa para um público muito mais amplo e mostrar não só as condições de vida delas, mas retratar a dimensão deste sofrimento;, conta.
A personagem central da trama, Massoumeh Sadeghi, é uma garota entre tantas na capital Teerã, que, na busca por realizar o sonho de ir para a universidade, acaba sendo pressionada violentamente pelos pais e irmãos a interromper os estudos e a casar à força com um desconhecido. O destino dela passeia por cinco décadas de história do Irã sob o regime autoritário dos xás e, depois, em meio ao caos da revolução de 1979, que originou vários grupos fundamentalistas religiosos. Enquanto a guerra seguia, às mulheres restava tentar salvar a própria vida e a dos filhos, em uma luta solitária contra a fome, a miséria, as privações e o preconceito da sociedade.
A própria escritora teve que enfrentar aiatolás para conseguir publicar o livro, censurado por duas vezes no país. A primeira autorização ocorreu em 2003, dada pelo então presidente Mohammad Khatami. ;Meu editor concordou em distribuí-lo da forma mais ampla e rápida possível;, contou. Algumas reimpressões foram bloqueadas por pendências decorrentes de alterações no enredo da história. ;Em 2005, o livro tinha sido publicado 14 vezes, mas quando o presidente (Mahmoud) Ahmadinejad foi eleito, o livro foi mais uma vez banido;, lamenta. Saniee recorreu da decisão e saiu vitoriosa, com a ajuda de Shirin Ebadi, advogada e ativista dos direitos humanos que recebeu o Nobel da Paz em 2003. Hoje, O livro do destino se tornou o maior best-seller da história do Irã, publicado em aproximadamente 25 países. Outros romances da autora ainda aguardam aprovação da censura iraniana.
As transformações que a revolução islâmica trouxe ao Irã também são o pano de fundo para o primeiro romance da escritora iraniana Dina Nayeri, no livro Uma colher de terra e mar. A narrativa apresenta uma menina de 11 anos, Saba, que é separada da irmã gêmea Mahtab e da mãe no aeroporto de Teerã, em uma tentativa frustrada de fuga do país por conta da onda de violência. Para o pai, as duas estão mortas, mas, certa de que foi deixada para trás, Saba acredita que elas fugiram para os Estados Unidos. A jovem fica obcecada pela cultura norte-americana, na esperança de um dia se mudar para lá e reencontrá-las. Enquanto o país luta contra as tradições ocidentais, Saba se torna uma contadora de histórias, todas protagonizadas pela irmã gêmea e sua vida de glória do outro lado do planeta. O livro discute o significado de se tornar mulher em meio a casamentos forçados, violências e injustiças contra as mulheres em nome da religião.
Vida real
Há outras obras que abordam casos verídicos. Quando publicou Infiel e nômade, a escritora, ativista, feminista e ateísta Ayaan Hirsi Ali já despertou ira ao se declarar ;infiel; à religião islâmica. Com Herege ; Por que o islã precisa de uma reforma imediata, a autora somali é a própria personagem colocada no centro de uma discussão de temas sensíveis. Ela mistura relatos de experiências pessoais com a defesa de uma profunda reforma na doutrina da religião descrita por ela como ;violenta por essência;. Considerada uma das principais vozes críticas ao islamismo, a escritora, que já foi exilada na Holanda e hoje vive nos Estados Unidos, acredita que o ativismo das mulheres é o diferencial hoje, embora o papel delas ainda não tenha mudado muito no mundo muçulmano. O texto, concluído logo após o ataque ao jornal francês Charlie Hebdo ; que deixou 12 mortos em janeiro deste ano ; é um choque de realidade, que faz uma abordagem crítica para que os muçulmanos abandonem dogmas que os prendem ao século VII.
Sentada em frente a um computador em Paris, uma jornalista usou um nome falso, Melodie, para manter contato com Abu Bilel, um combatente francês que é próximo do autoproclamado califa do Estado Islâmico, Abubaker al-Bagdhadi. Em uma narrativa densa e detalhista no livro Na pele de uma jihadista, a escritora Anna Erelle - que também é uma identidade fictícia - se aproxima de um terrorista, pela internet, para descobrir de que forma eles recrutam jovens na internet para integrar o EI. No flerte on-line com um jihadista acostumado a cortar cabeças e empunhar fuzis, ela consegue detalhar o jogo de sedução usado para conquistar novos combatentes e principalmente mulheres dispostas a deixar o mundo e abraçar a vida ;no paraíso;. Erelle faz um alerta à vulnerabilidade dessas ;noivas jihadistas;, um dos pontos fortes da obra de estreia da francesa.
Direito de estudar
A estudante paquistanesa Malala Yousafzai, que no ano passado ganhou o Prêmio Nobel da Paz, também se destaca no rol de personagens femininos em obras literárias. O livro Malala ; A menina que queria ir para a escola, da escritora brasileira Adriana Carranca, conta os passos da jovem que, aos 15 anos, levou um tiro na cabeça de militantes do Talibã na saída da escola, em 9 de outubro de 2012, no Vale do Swat. Diferentemente de outros títulos publicados em todo o mundo sobre Malala, esta obra tem uma abordagem ainda pouco comum: um livro-reportagem direcionado para crianças. ;É a história de uma criança, uma menina que mudou o mundo usando apenas as suas palavras. Como qualquer grande mudança virá das novas gerações, eu acredito que essa história pode servir-lhes de inspiração;, explica a autora, que já tem outros dois livros sobre experiências em países muçulmanos.
A linguagem é simples e acessível, mas não omite os fatos reais da vida de Malala, segundo Adriana Carranca. ;Dilacerada pelo terrorismo e pela guerra, ela fez sua voz ser ouvida em todo o mundo;. O texto traz aos pequenos e adultos a mensagem poderosa e transformadora da paquistanesa, sobre a defesa dos direitos das crianças a estudar. ;Malala é uma ;gata-borralheira; dos tempos modernos. Ela não queria se casar para ser alguém através do marido, mas ir para a escola e se tornar alguém através do mundo de possibilidades que a escola traz. É uma história infantil dos nossos tempos;.
O livro do destino
Autor: Parinoush Saniee. Tradução: Ludimila Hashimoto. Bertrand Brasil Editora. Páginas: 462. Preço: R$ 49
Na pele de uma jihadista - A história real de uma jornalista recrutada pelo Estado Islâmico
Autor: Anna Erelle. Tradução: Eduardo Brandão e Dorothée de Bruchard. Paralela Editora. Páginas: 208. Preço: R$ 29,90. Disponível em e-book (Preço: R$ 19,90)
Herege - Por que o islã precisa de uma reforma imediata
Autor: Ayaan Hirsi Ali. Tradução: Laura Teixeira Motta e Jussara Pinto Simões. Companhia das Letras Editora. Páginas: 272. Preço: R$ 39,90. Disponível em e-book (Preço: R$ 27,90)
Malala - A menina que queria ir para a escola
Autor: Adriana Carranca. Companhia das Letrinhas Editora. Página: 96. Preço: R$ 29,90
Uma colher de terra e mar
Tradução: Léa Viveiros De Castro. Rocco Editora. Páginas: 384. Preço: R$ 49,50. Disponível em e-book (Preço: R$ 29,50)
Três perguntas/Parinoush Saniee
A personagem Massoumeh lutou contra o próprio destino? Ela ganhou ou perdeu?
Circunstâncias e tradições culturais e sociais moldam o tipo de vida e alguns têm de suportar. Mas submeter-se a uma vida tão predestinada depende muito da habilidade, inteligência e aspirações. Massoumeh é apenas um símbolo de uma geração de mulheres iranianas que estavam à frente de toda a injustiça da sociedade. Asseguraram amplas oportunidades educacionais a seus filhos, mesmo que elas mesmas não tivessem. Tanto é que hoje 67% dos estudantes universitários são mulheres. Mesmo assim, o regime percebeu o perigo que isso representa à própria existência e iniciou uma série de limitações e obstáculos para meninas entrarem nas universidades, mas elas formam grupos maiores e desafiam esse sistema. As mulheres estarão na vanguarda de qualquer movimento futuro para a mudança.
A história do livro é baseada em fatos reais? Você conta histórias verídicas no livro?
Quando eu decidi escrever o resultado de minha pesquisa como um romance, eu escolhi um símbolo para cada assunto. Queria mostrar o papel que a religião desempenha em tudo. A mesma abordagem foi levada para estruturar todos os personagens. Sou psicóloga e, como tal, acompanhei muitos desses casos. Desse modo, formei todos os personagens do enredo de modo a garantir que eles refletissem a realidade, o máximo possível.
Amor proibido, desigualdade entre homens e mulheres, a criação dos filhos, revolução, guerra, religião. Qual o maior conflito da personagem?
Massoumeh experimentou toda a transformação cultural, econômica e política que ocorreu repentinamente. Os filhos das iranianas eram aqueles que estavam correndo nas ruas durante a revolução e tornando-se vítimas de vários movimentos políticos subterrâneos. Muitos foram presos, forçados a lutar em uma guerra de oito anos com o Iraque ou fugir do país ilegalmente. Essas mulheres estavam em uma batalha constante para manter e proteger suas famílias e, particularmente, seus filhos. Não hesitariam em sacrificar nada. Viver apenas em benefício de suas famílias simplesmente.