Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

O dilema de ir além dos zumbis em Fear the walking dead

Série derivada de The walking dead pode apostar nos dramas humanos para chegar ao sucesso da trama original


Reconstruir o universo apocalíptico já explorado à exaustão em The walking dead soa como tarefa hercúlea e arriscada para Fear the walking dead, a série derivada criada pelo canal AMC para explicar como os zumbis dominaram o planeta depois de uma epidemia em massa. O motivo está na cara: a atração original inventada a partir dos quadrinhos de Robert Kirkman triunfou de forma inegável na televisão ao despejar milhões de mortos-vivos em busca de carne fresca e acompanhar parcos humanos à procura do porto seguro inexistente em meio ao caos de canibalismo, sangue e vírus. A combinação de suspense, efeitos bem aplicados na criação das criaturas e personagens moralmente complexos produziu uma trama com identidade única, alimentada a cada capítulo pela incerteza da sobrevivência no momento seguinte.

[SAIBAMAIS]Daí, a dificuldade óbvia de Fear the walking dead de retomar o tema mesmo distante geograficamente (a série derivada da AMC derivada se passa em Los Angeles enquanto a original é na Geórgia e na Virgínia) e no tempo (a narrativa retorna ao ponto zero da infecção genocida, futuro retratado na prima consagrada): qualquer investida na modificação do curso dos acontecimentos ou até no comportamento dos zumbis será passível de comparação com o seriado original. E a memória do bando de Rick Grimes, o mocinho controvertido de The walking dead, tende a ganhar a preferência do público sobre uma trama ainda em construção.

Mas o risco assumido pela nova série é, paradoxalmente, a possibilidade de ela se consolidar junto à audiência. Se os zumbis apresentam comportamento semelhante, mesmo descontadas as peculiaridades do início da pandemia, e sabe-se o desfecho na guerra sanguinolenta contra a humanidade, resta aos criadores apostar na estratégia a partir da qual a atração pioneira atravessou cinco temporadas com frisson ininterrupto: a exploração das falhas do caráter humano, a arma mais eficaz para desequilibrar a luta entre vivos e mortos.

O sucesso de The walking dead passa pela capacidade de fazer o enredo extrapolar os ataques dos zumbis e focar a corrosão gradativa do próprio homem pressionado por situações extremas, de vida e morte. Amedrontados pela possibilidade de serem devorados pelas criaturas e aparentemente livres das regras de convívio social para combatê-las, eles desferem toda sorte de atos bárbaros contra os semelhantes: mentem, roubam, matam, traem, subjugam e sacrificam colegas, desconhecidos, familiares sob pretexto de salvar a própria pele. A decomposição humana é o traço mais forte na iminência do destino trágico - e ela é evidenciada na mudança contínua dos aspectos dos sobreviventes, cada vez mais desconfiados, intolerantes, agressivos, mortais.

Em Fear the walking dead, há um aceno para abordagem parecida, sobretudo a partir do desenho de uma sociedade contaminada por relações humanas tão frágeis quanto corriqueiras: um pai ausente de convívio do filho e envolvido na ajuda ao enteado (um garoto desacreditado por ser usuário de drogas), a mãe distante dos filhos por dedicação ao trabalho e ao namorado novo e rejeitado por eles, a filha presa ao próprio mundo de intolerância.

O ambiente reforça a sensação de desarranjo social, com uma escola equipada de detectores de metais para revistar os alunos e o som intermitente de sirene policial a indicar um perigo constante. Personagens e sociedade, à primeira vista, aparecem controvertidos e propícios a protagonizarem experiências moral e eticamente questionáveis - basta ver a identidade dupla de um traficante no primeiro episódio, entre a máscara de bom garoto e a liderança no mundo do crime.

Embora com a segunda temporada já confirmada, Fear tem seis capítulos para mostrar o potencial de cativar a audiência fidelizada ao universo da trama original enquanto cria um caminho próprio, como fez Better call Saul (AMC/Netflix), derivada da premiada Breaking bad (AMC). O elenco reúne figuras já conhecidas do cinema e da televisão, como Kim Dickens (Garota exemplar), Cliff Curtis (Os últimos cavaleiros), Frank Dilliane (Harry Potter), Alycia Debnam-Carey (No olho do tornado) e Elizabeth Rodrigues (Orange is the new black). Juntos, eles devem saciar a curiosidade do público sobre a travessia da humanidade do princípio da infecção zumbi até a quase completa derrocada dos homens em um futuro próximo. Não sem antes, espera-se, proporcionar momentos em torno dos quais a a chaga da desumanidade pode se tornar a principal ameaça para quem deseja continuar vivo.

Assista ao trailer:

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